Lula no JN? Jogo da série B tem prioridade em bares da Vila Madalena

É possível que, no futuro, as pessoas perguntem o que você estava fazendo nos momentos-chave da eleição presidencial de 2022. Aquela que transcorreu em meio a ameaças de golpe e temor de violência generalizada, pós-pandemia, no meio de uma grave crise sócio-econômica.
As entrevistas dos candidatos ao Jornal Nacional são um destes momentos. Mas nem todo mundo as acompanha grudado na TV, ao lado da família, de amigos militantes ou parentes que odeiam suas opções políticas e que chutariam o aparelho se pudessem.
Na Vila Madalena, por exemplo, a entrevista de Lula a William Bonner e Renata Vasconcellos não despertou grandes paixões. Quem passeasse pelo bairro boêmio da zona oeste de São Paulo teria dificuldades para encontrar uma única TV ligada no grande evento da noite.
O Canto Madalena, reduto da esquerda e dos petistas, era um dos poucos lugares onde o público se mobilizou para assistir à entrevista. Na verdade, uma pequena parte dele: cerca de dez pessoas se dirigiram ao salão dos fundos do bar e foram brindadas com uma TV que queimou no exato momento em que o telejornal começou.
Um garçom tentou resolver a situação mexendo nos fios, mas logo ficou claro que aquilo não daria certo. Parecia azar demais para ser verdade, e a solução foi recorrer a uma velha TV de tubo onde Lula surgiu tão alaranjado quanto Donald Trump, ao lado de caracteres que avisavam que aquela era uma transmissão VHS. Alguém brincou que, na verdade, estavam assistindo ao debate presidencial de 1989.
A maior parte do público seguia muito mais interessado no samba que rolava no espaço principal e impedia que se ouvisse uma única palavra do ex-presidente. Frustrados, os interessados na entrevista sacaram seus celulares e foram para outro ambiente. Tentavam escutar a entrevista com os aparelhos grudados em seus ouvidos, como se todos ali tivessem recebido ao mesmo tempo mensagens de áudio urgentes.
Boemia padrãozinho
O perfil da Vila Madalena mudou muito ao longo dos últimos vinte anos. De reduto de bar pé-sujo e frequentadores algo "alternativos", o bairro hoje abriga grandes bares assépticos e padronizados.
Ao sair do Canto Madalena em direção à rua Aspicuelta, a reportagem do TAB encontrou uma atmosfera apolítica. Com poucas exceções, como a de um boteco, o único legítimo pé-sujo do caminho, onde três senhores de cara fechada também assistiam ao Jornal Nacional.
Ou ao menos parecia que assistiam, porque um deles fez questão de esclarecer que aquilo era um engano. "Não estamos vendo esse ladrão. Está passando porque a TV está ligada na Globo", esclareceu, em tom agressivo, o senhor mais exaltado. "A gente não quer ouvir nada do que ele [Lula] tem a dizer. Aqui é Brasil, aqui é Bolsonaro!", esbravejou o homem. Em seguida, alguém mudou de canal e Lula deu lugar à previsão do tempo.
Se no Canto Madalena a TV queimou, por toda a rua Aspicuelta não faltavam gigantescos telões de 80 polegadas ou mais com imagens ultradefinidas. Todas, sem exceção, transmitiam o duelo entre Vila Nova e Sampaio Corrêa pela série B do Campeonato Brasileiro.
As pessoas bebiam, flertavam, falavam alto, discutiam sem dar a mínima importância — nem para o importante confronto, nem para a entrevista. O que não significa total alienação sobre a sabatina de Lula.
Dora, por exemplo (ela não quis dar o sobrenome), bebe na calçada de um dos bares de visual megalomaníaco que tomaram conta do bairro. Ao ser lembrada da entrevista, diz que acha uma "tragédia" que nenhuma TV do bar a esteja transmitindo, embora concorde que o ambiente barulhento não ajudaria a acompanhá-la. "A galera não está se ligando que a eleição já está aí", disse.
Já Rômulo Rodrigues conseguiu o feito de se manter alheio à política, mesmo com as mentes e corações do país em chamas. "Eu não acompanho. Minha opinião política é a de outra pessoa", admitiu. "Sou meio burrinho nisso [em política] e minha irmã é cientista social, então confio muito na opinião dela. Ela sugeriu que eu votasse no Lula", explicou.
Barulho à parte, será que alguém ali pararia para prestar atenção na sabatina caso o rosto de Lula surgisse amplo e em alta definição, em uma das TVs do bar? "Acho que não", disse Mateus Romão. "As pessoas vêm aqui para descontrair e falar de outros assuntos. Talvez até trouxessem o tema para a mesa."
A entrevista já estava quase no fim quando a reportagem do TAB encontrou uma TV ligada na sabatina. Foi no único boteco da rua Aspicuelta que resistiu à gentrificação. Um casal de amigos, únicos clientes, tentava ouvir o ex-presidente em um aparelho bem mais humilde que os dos bares vizinhos.
"Só colocaram na entrevista porque nós pedimos", afirmou Maria Clara Coimbra. "Acho que, até agora, o Lula está bem. Sabe se comunicar com a população mais necessitada. E o pessoal criticou a entrevista com o Bolsonaro, mas acho que o Bonner está fazendo o papel dele."
Para seu amigo Djavan Fagundes, entrevistas e debates ainda têm peso na escolha dos candidatos. "Para muita gente que não tem acesso às notícias, a TV ainda é o único canal pelo qual consomem informação", disse. "Sobre não ter outras TVs ligadas na entrevista no bairro, acho que tem a ver com as pessoas terem saído só para se divertir e também com uma questão econômica. Estamos em uma das áreas mais nobres da cidade."
Com o fim da entrevista, a reportagem foi abordada por um rapaz com trajes de cozinheiro que aproveitava a pausa no trabalho para fumar um cigarro. Ele quis saber se iríamos falar bem ou mal do Lula, e emendou: "o Lula já está eleito. Saiu da prisão e será eleito. Se o Marcola sair da prisão, ele é eleito".
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