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Luto em câmera lenta: o impacto da morte de Elizabeth 2ª em Londres

Homenagem à rainha Elizabeth 2º na frente do Palácio de Buckingham, na sexta-feira (9) - Alice de Souza/UOL
Homenagem à rainha Elizabeth 2º na frente do Palácio de Buckingham, na sexta-feira (9) Imagem: Alice de Souza/UOL

Alice de Souza

Colaboração para o TAB, de Londres

09/09/2022 10h32

Embora a formalidade monárquica seja pragmática sobre os rituais pós-morte de um membro da família real, o imponderável da vida não coube nos protocolos e planos de ação traçados para a partida da rainha Elizabeth 2ª. A reação e tempo de reação dos súditos, amantes e haters. Longe dos portões dos palácios e mais perto da realidade de Londres, o primeiro dia da Operação London Bridge foi menos arrebatador do que a vida digital talvez possa conceber.

O luto chega aos poucos. Londres entardeceu cinza e chuvosa, com ruas mais vazias que o normal, e inquieta — seja pela indecisão entre nuvens, sol e garoa, seja pela mensagem divulgada por volta das 12h30, pelo Palácio de Buckingham, sobre o estado de saúde da rainha. Logo as emissoras de televisão reorganizaram a grade para comportar as atualizações direto do Castelo de Balmoral, na Escócia. Os sites de notícia mudaram a página principal com transmissões ao vivo e linhas do tempo, e as redes sociais começaram a suspeitar.

Em contrapartida, a cidade e as pessoas parecem ter demorado mais tempo para processar. Pouco menos de uma hora antes do anúncio oficial da morte da majestade, perto da estação Liverpool Street, por onde passam cinco linhas de metrô e o Overground, o máximo de rotina alterada eram olhares mais frequentes e atentos aos celulares.

Foto de Elizabeth 2ª quando jovem, no Memorial da Rainha Vitória, em frente do Palácio de Buckingham - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Foto de Elizabeth 2ª quando jovem, no Memorial da Rainha Vitória, em frente do Palácio de Buckingham
Imagem: Alice de Souza/UOL

Com duas amigas "turistando" na região do Soho, a oeste da cidade, a professora de inglês brasileira Giovanna Alves, 25, soube da morte da rainha enquanto comia uma pizza. Começou a receber mensagens de amigos no Brasil perguntando pelo clima em Londres, mas olhou ao redor e não tinha muito o que responder.

"Ninguém falava sobre. Estava tudo normal, como se nada tivesse acontecido. Foi bem estranho", diz ela, antes de ser interrompida por uma das amigas. "Até achei que o 'staff' pudesse ter alguma reação, porque às vezes os clientes podem ser estrangeiros, mas nada", contou Mayara Pereira, 28, também professora.

O plano inicial era voltar para um pub, mas a partida da monarca cortou o clima e a decisão foi ir ao local onde, certamente, encontrariam o sentimento de tristeza que já tomava conta delas: os portões de Buckingham.

Da esq. para a dir., as amigas Giovanna Alves, Denise Carvalho e Mayara Pereira, que visitam a Inglaterra e foram à vigília na frente do Palácio de Buckingham - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Da esq. para a dir., as amigas Giovanna Alves, Denise Carvalho e Mayara Pereira, que visitam a Inglaterra e foram à vigília na frente do Palácio de Buckingham
Imagem: Alice de Souza/UOL

Uma noite sem rainha

Londres anoiteceu ainda silenciosa e escura na primeira noite sem rainha. A London Eye, roda gigante cartão-postal desde o início dos anos 2000, desligou as luzes em homenagem à "extraordinária vida e trabalho da Vossa Majestade". Aos poucos, por outro lado, as luzes da cidade também surgiram como forma de reverenciar Elizabeth 2ª.

The Shard, prédio mais alto da Europa ocidental, com 310 metros de altura, tingiu o topo de roxo. As paradas de ônibus nos arredores da Abadia de Westminster e do Green Park estamparam no painel eletrônico de propagandas uma foto da soberana com as datas de nascimento e falecimento. No Piccadilly Circus, as telas formando outdoors também expuseram uma homenagem à rainha.

O Palácio de Buckingham, até 2020 a residência oficial da monarca, antes da mudança dela para o Castelo de Windsor no início da pandemia, concentrou as principais homenagens e condolências. Em mensagem publicada numa conta de Twitter e depois espalhada em grupos de WhatsApp, taxistas foram convocados a deixar os postos de trabalho e estacionar os carros na The Mall, a avenida em frente ao prédio.

O taxista britânico Steve Smith, 35, disse que decidiu parar o trabalho e ir até lá em sinal de respeito. "Muitas pessoas entram no poder, no início do reinado, e prometem coisas que não cumprem. Ela veio, disse que honraria o povo da Grã-Bretanha, a Commonwealth, enquanto ela fosse rainha. E ela fez isso até o dia da morte, durante 70 anos. Cumpriu até o fim. Foi uma senhora notável", explicou.

Steve já estava estacionado havia uma hora na frente de Buckingham e pretendia ficar lá "até a polícia tirar". Por ele, a rainha teria chegado aos 100 anos. Por mais de uma vez, o taxista ressaltou a capacidade de trabalho de Elizabeth como motivo de orgulho.

"Ela não perdia nada. Sei que era aconselhada, mas mesmo doente, ainda conseguiu encontrar a primeira-ministra. Não houve um momento em que ela tenha nos decepcionado", ressaltou, antes de confessar um motivo pessoal para estar ali, prostrado, dentro do carro, com faróis acesos: o príncipe Philip costumava dirigir um "black cab" (táxi preto, marca da cidade) para andar despercebido por Londres — motivo pelo qual também ganhou a mesma homenagem dos taxistas quando faleceu, em 2021. "De certa forma, é uma conexão que temos", justificou Smith.

O taxista britânico Steve Smith, em frente ao Palácio de Buckingham - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
O taxista britânico Steve Smith estacionou em frente ao Palácio de Buckingham em homenagem à rainha
Imagem: Alice de Souza/UOL

Quem também atendeu ao chamado dos colegas foi o taxista Qwemi Yiadom, 51. Nascido em Gana, e morando na Inglaterra há 30 anos, ele trocou uma viagem para outra cidade, a duas horas e meia de Londres, para estacionar o táxi em frente ao Palácio. "Morte é morte, não importa quantos anos você tenha. Ela foi uma boa mulher, maravilhosa para nós", afirmou. A viagem programada ficou para o domingo — Qwemi estava disposto a ficar o quanto fosse necessário. Acabou indo embora em 20 minutos depois da entrevista, quando a polícia começou a dispersar o grupo.

Próximo aos portões, pessoas choravam, erguendo bandeiras da Inglaterra. Flores eram colocadas junto às luzes de vela, distribuídas nos portões, grades e monumentos ao redor do prédio. Vez ou outra, alguém puxava o hino nacional, cujo tradicional "God save the Queen" era trocado em alguns momentos por "God save the King".

O taxista Qwemi Yiadom, que estacionou o carro na frente de Buckingham em homenagem à rainha - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
O taxista Qwemi Yiadom, que vive em Londres há 30 anos
Imagem: Alice de Souza/UOL

A engenheira de custos brasileira Denise Carvalho, 38, esperava encontrar exatamente esse cenário, desde que soube a notícia. "Resolvi vir porque pensei: 'preciso viver esse momento'. Tenho respeito pela história dela", afirmou, mais resignada do que quando esteve na pizzaria com as outras duas amigas brasileiras.

Luminoso em ponto de ônibus da Victoria Street, perto da Abadia de Westminster, em homenagem à rainha Elizabeth 2ª - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Luminoso em ponto de ônibus da Victoria Street, perto da Abadia de Westminster, em homenagem à rainha Elizabeth 2ª
Imagem: Alice de Souza/UOL

Da rainha ao rei

Apesar da comoção em frente aos portões, nos arredores do St. James Park, ao lado do Palácio, havia pouca aglomeração. Tampouco vendedores de flores. Os pubs permaneceram lotados até depois das 21h.

Matthew Ma, natural de Hong Kong, vive em Londres há dois anos - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Matthew Ma, natural de Hong Kong, vive em Londres há dois anos
Imagem: Alice de Souza/UOL

Matthew Ma, 44, vive em Londres há dois anos e chegou com um buquê de rosas brancas, comprado no supermercado perto de casa, no bairro de Hackney, na região leste de Londres. Matthew atravessou quarenta minutos, entre ônibus e metrô, apenas para deixar as flores. "Ela é a nossa chefe", justificou.

Na memória, carrega um momento importante. Suas memórias ligadas à rainha são de antes de julho de 1997, quando o Reino Unido assinou documentos devolvendo Hong Kong à China. "Nós até hoje pensamos que somos parte do Reino Unido. Eles [a família real] trouxeram muitos benefícios para nós, éramos mais livres, tínhamos acesso à educação gratuita", afirmou.

Entre interessados e motivados, havia também uma horda de curiosos — muitos adolescentes e jovens adultos que aproveitaram a mobilização para beber. Às 21h, já havia muita gente trançando as pernas ao tentar caminhar pelo Memorial da Rainha Vitória. De bronze e mármore branco, o monumento virou camarote de interessados em ver, do alto, a mobilização em torno dos portões. Alguns, com gim na mão. Outros, com cerveja e vinho.

O hondurenho Jimmy Arturo, 40, estava entediado em casa e decidiu "se transformar em mais um em meio à multidão". Ele estava a 30 minutos distante do Palácio, assistindo às notícias do próprio país, quando soube do ocorrido com Elizabeth 2ª. E seguiu vendo notícias de Honduras. Depois, decidiu pegar o sobrinho e o filho, ambos aos 12 anos, e levá-los para ver "a história de perto". "Qualquer um queria estar aqui agora, é um privilégio. Ela é um personagem histórico", afirmou.

Palácio de Buckingham, em Londres, na manhã de sexta-feira (9) - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Palácio de Buckingham, em Londres, na manhã de sexta-feira (9)
Imagem: Alice de Souza/UOL

A comoção dos londrinos

Tal qual o interesse, o conhecimento de Jimmy sobre a família real estava limitado à rainha. Agora, quando questionado sobre o sucessor, afirma sequer saber quem é Charles — filho que assumiu o posto de Rei. Embora os hinos entoados pela multidão vez ou outra já vissem a mudança em curso, por enquanto a noite de quinta e a manhã de sexta continuam sendo da rainha.

O Palácio amanheceu tomado por flores. Divididos por um gradil da multidão, os jarros e buquês só se aglomeram junto a bilhetes, cartões, cartas e bandeiras. Nos arredores de Buckingham, homens, mulheres, crianças e idosos, de todas as idades, passam carregando buquês. Um vendedor de uma loja localizada atrás do Palácio admitiu que, às 8h30, a movimentação de compradores já era maior que a habitual.

Seção de flores na Marks & Spencer da estação Charing Cross, em Londres - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Seção de flores na Marks & Spencer da estação Charing Cross, em Londres
Imagem: Alice de Souza/UOL

Próximo à estação Embankment, nos arredores da Trafalgar Square, outra vendedora que preferiu não se identificar dizia que, por enquanto, ainda não havia percebido grandes mudanças. "Também, é sexta-feira, muita gente trabalha de home office, as ruas estão mais vazias." A estratégia dela é acompanhar a movimentação hoje para definir os horários de abertura e fechamento da loja de flores nos próximos dias.

A garçonete brasileira Eduarda Melo, 26, mora em Londres há seis anos. Fez questão de ir ao Palácio com um buquê de flores amarelas para deixar. "Ela não é só rainha, ela é mãe. A gente se sente triste", disse. No momento do anúncio da morte ela estava trabalhando em um restaurante no leste londrino. "A gente não parou, mas o restaurante parou. Nossa colega inglesa não conseguiu mais trabalhar. As pessoas saíram mais cabisbaixas do que entraram."

O dia 2, por ora, permanece silencioso. As pessoas chegam, deixam as flores; algumas fazem uma prece, outras choram, comedidas, e depois saem, sem dizer palavra. Contudo, a maioria repete o gesto. Deixa a flor e tira uma foto do que deixou. Ou filma o momento. Mesmo quem chega sem nada na mão garante o registro pelo celular. O importante é registrar que esteve ali. Às 8h30, as lojas oficiais do palácio trocavam os avisos dourados e vermelhos, com horário de abertura e fechamento, por um adesivo preto. O luto, para quem vive da realeza ou com orgulho dela, parece estar chegando. Ninguém fala de futuro por ali; o presente ainda está sendo assimilado.
Para o taxista britânico Steve Smith, é estranho dizer "God save the king" (Deus salve o Rei). "Como ele [Charles] é filho dela, deve estar alinhado a ela. Mas esse é um posto difícil de ocupar. E, daqui pra frente, teremos só reis", refletia.

Flores no Palácio de Buckingham, na sexta-feira (9) - Alice de Souza/UOL - Alice de Souza/UOL
Imagem: Alice de Souza/UOL

Enquanto se arrisca em pensamentos, o outro taxista, Qwemi Yiadom, prefere a toada de um despertar lento, confortável e pacífico— tal qual a família real diz ter sido a morte da soberana — para encarar o novo amanhecer sem Elizabeth 2ª. "A questão do rei, por enquanto, é secundária. Isso é o futuro, pensemos na morte agora. Amanhã é outro dia."