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Em distrito baiano, evangélicos são maioria e falam muito sobre política

Culto na Assembleia de Deus de Barra de Pojuca, distrito popular de Camaçari (BA) onde os evangélicos são maioria - MOV.doc
Culto na Assembleia de Deus de Barra de Pojuca, distrito popular de Camaçari (BA) onde os evangélicos são maioria
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Do TAB, em Camaçari (BA)

26/09/2022 04h01

É manhã de domingo em Barra de Pojuca, distrito popular de Camaçari, a aproximadamente 70 km de Salvador (BA), e o comércio está quase deserto. Na rua principal que dá acesso ao bairro periférico, o que se ouve são ecos de cantoria, falas e instrumentos musicais. É o som das igrejas evangélicas que dominam a paisagem sonora da comunidade.

Desde a década de 1990, o número de evangélicos no Brasil cresce em ritmo vertiginoso. Em 2020, 31% dos brasileiros se declararam evangélicos, segundo pesquisa do Datafolha. O número comprova projeções que apontam uma mudança fundamental na fé brasileira. Em 2032, eles serão o principal grupo religioso do país.

Muitas comunidades e municípios do Brasil já vivem esse futuro. Os sons daquele domingo, em Barra de Pojuca, comprovam isso. Num raio de 2 km, contam-se apenas uma igreja católica, nove terreiros e cerca de 80 denominações evangélicas.

Cerca de 80 igrejas evangélicas compõem o cenário do distrito - MOV.doc - MOV.doc
Cerca de 80 igrejas evangélicas compõem o cenário do bairro
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Muitas igrejas evangélicas em Barra de Pojuca servem de escola para crianças - MOV.doc - MOV.doc
Muitas igrejas evangélicas em Barra de Pojuca servem de escola para crianças
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A Igreja Batista em Células é uma das maiores da região e fica logo na entrada do bairro. O sermão da pastora pede aos fiéis: "Orem pela nação!".

Após o culto, José Carlos Marques, 44, diz que já sabe em quem vai votar. "Alguns líderes entenderam que precisam se posicionar para que a igreja, no futuro, não sofra consequências políticas", explica.

Faltavam três meses para o início da campanha eleitoral e nenhuma citação à política ou a algum candidato foi feita durante o culto. Semanas antes, no entanto, a igreja estava em peso no evento comemorativo de descobrimento do Brasil, em 22 de abril, em Porto Seguro, a mais de 700 km dali.

Fiéis e pastores vestiam camisetas verde-amarelas e faziam alusões ao presidente Jair Bolsonaro, presente também no tradicional evento. "A gente vai todo ano e por acaso ele estava lá. A Bíblia pede pra gente orar para as autoridades", disse José Carlos Marques.

No último 7 de setembro, a cena se repetiu — foi o dia escolhido para a Marcha para Jesus na região de Camaçari. Um trio elétrico tocou o hino nacional e louvores, arrastando fiéis pelas ruas da cidade. "Três coisas vieram como bandeira dessa gestão agora: Deus, pátria e família. Isso faz a diferença. A questão do patriotismo despertou a todos, crentes ou não."

Um dos líderes da igreja, porém, pondera que nem sempre esse voto ungido foi de direita. "Antes de 2018 a gente aqui já se posicionava. Hoje eu acho que essa aproximação toda é por questão de pauta, princípios, não exatamente pela pessoa. Eu preciso me aliar a pessoas que defendem o que eu defendo", explica Marques.

José Carlos Marques, um dos líderes religiosos da Igreja Batista em Células de Barra do Pojuca - MOV.doc - MOV.doc
José Carlos Marques, um dos líderes religiosos da Igreja Batista em Células de Barra do Pojuca
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A Igreja Batista em Células é uma das maiores da região e fica logo na entrada do bairro - MOV.doc - MOV.doc
A Igreja Batista em Células é uma das maiores da região e fica logo na entrada do bairro
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A denominação veio da Igreja Batista Tradicional de Salvador. Naquela época, não era permitido nem bater palma durante o culto. Aos poucos, a liturgia foi mudando e a banda ganhou o reforço de um balé — os gritos de "aleluia" e louvações foram liberados.

Mas o que mais a difere das outras igrejas é sua organização. Cada líder administra células em casas de família, aumentando o poderio de evangelização bairro adentro. Homens se reúnem entre si — "e mulheres se resolvem com mulheres. Eu acho que não fica bem eu, casado, aconselhar uma mulher", José Carlos Marques observa.

Os grupos se reúnem semanalmente na casa de algum fiel e debatem nos grupos de WhatsApp. Na prática, é como se cada casa do bairro fosse um braço da igreja. Esse modelo fez a denominação saltar de 50 membros para mais de 1 mil nos últimos anos, nas contas da liderança.

Culto na Assembleia de Deus de Barra do Pojuca, bairro popular de Camaçari (BA) - MOV.doc - MOV.doc
Culto na Assembleia de Deus de Barra do Pojuca, bairro popular de Camaçari (BA)
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A cozinheira Cremilda Falcão, da Assembleia de Deus, lembra dos costumes do passado: "política era coisa do diabo" - MOV.doc - MOV.doc
Cremilda Falcão, da Assembleia de Deus, lembra costumes do passado: 'Política era coisa do diabo'
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Fragmentação divina

Embora a tradicional Assembleia de Deus esteja ampliando seu espaço na construção de uma escola, são igrejas como a Batista em Células — nascidas de um desejo de rejuvenescer seus cultos e emancipar entendimentos próprios do Evangelho e do mundo — que dominam o bairro.

A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo — mais de 6.000 templos e 1,8 milhão de fiéis por todo o Brasil, segundo o Censo de 2010 do IBGE —, não é nem de longe a maior ou a mais frequentada.

"Ser evangélico é, por definição, não se prender a dogmas ou catecismos'', explica Ricardo Alexandre, jornalista e escritor do livro "E a verdade os libertará", sobre a relação do discurso de Jair Bolsonaro com os evangélicos.

A marca que une o grupo é a diversidade: os evangélicos podem ser muitas coisas, menos uma massa uniforme. "Esses pastores que se arvoram representantes dos evangélicos podem no máximo falar pela sua denominação. A maior parte [dos fiéis] não participa de nenhuma delas, são os não-denominacionais. Ser impactado por alguma dessas igrejas significa ter tido acesso a um nível de cura social, de rudimento civilizatório, que o poder público negou ao brasileiro por 500 anos", explica o jornalista. "Significa, muitas vezes, ter acesso à palavra escrita pela primeira vez."

Testemunhos de fé

Há muitas histórias em Barra do Pojuca — mas o começo da maioria delas se assemelha. A população trabalha na indústria do turismo, servindo "do lado de lá" da rodovia que corta a região. Da pista para baixo, numa área chamada Ilha do Meio, praticamente não há moradores, apenas condomínios, pousadas e resorts.

Na hora do testemunho — maior atestado da fé e da transformação da vida de alguém —, descobre-se que muitos deles eram ligados às religiões de matriz africana e, entre os mais jovens, alguns tinham se envolvido com a criminalidade e o tráfico.

Jonas Conceição, 28, membro da Igreja Presbiteriana Renovada, teve o pai assassinado, e a mãe morreu no parto. Ele cresceu com os avós e foi um dos muitos arrebatados pelas facções criminosas presentes no bairro.

Sua revelação se deu nas águas, literalmente: encurralado por policiais, escapou de um tiroteio mergulhando no mar. Só levou um tiro de raspão. Ali, pediu: se Deus o livrasse da morte, largava de vez aquela vida. O irmão não teve tanta sorte e foi assassinado.

"Eu não gostava de crente. Passava um de terno e Bíblia na mão, eu mangava" — diz, na gíria local para "caçoar". Ele trabalha como zelador de um dos resorts da região.

"Hoje eu entro em qualquer beco ou viela por causa do Evangelho. Eles respeitam o crente verdadeiro", diz, abrigando-se do sol, no horário de descanso do trabalho. "Gosto de política, mas não gosto de quando não olham para a família. Voto em quem pensa nos jovens, porque a oportunidade é muito pouca. Não há muitos projetos de esportes e trabalho. Aqui é uma área muito sedenta por isso."

As redes sociais são suas principais fontes de informação. "É muita live, em grupos da igreja. Nesse ano eleitoral é que está crescendo pra caramba, principalmente para os evangélicos, porque eles precisam saber quem colocar lá", explica. "Quando um justo governa, o povo não sofre."

Barra do Pojuca, em Camaçari (BA), vista de cima - MOV.doc - MOV.doc
Barra do Pojuca, em Camaçari (BA), vista de cima
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Jonas Conceição, membro da Igreja Presbiteriana Renovada: passado no tráfico - MOV.doc - MOV.doc
Jonas Conceição, membro da Igreja Presbiteriana Renovada: passado no tráfico
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Ana Rita Reis é bastante conhecida em Barra do Pojuca. Após receber uma descarga elétrica aos 15 anos, ela teve os dois braços amputados. A pastora conta o testemunho num livro, que ditou aos filhos. "Tive que perder meus membros para ser completa", ela diz, sorridente. Vaidosa, pedia ajuda à filha durante a entrevista: "Tá borrada a maquiagem?".

Aos 47 anos, ela fala sobre os valores evangélicos que regem sua vida e seu voto: a manutenção dos valores da família tradicional. Esse é o tema mais importante até no púlpito improvisado no quintal de uma casa simples — por enquanto, sede da sua igreja, a Comunidade Evangélica Fé, Vida e Graça. Quando questionada sobre a pregação, mais tarde, reclamou do que chamava de "ideologia de gênero".

"Se eu parir um filho homem, eu tenho sim o direito de colocar o nome do meu filho como homem. Há quem não queira, mas ninguém pode trazer isso como regra e oprimir os outros. Quero uma identidade para esse ser humano", opinou.

"De repente eles sentem que a família está ameaçada pela promiscuidade, que neto vai para escola e volta dizendo que é assexuado ou bissexual, ou que vai se decidir ainda", observa Ricardo Alexandre. "Podemos conjecturar durante horas, [dizer] que é inescapável, que é a pluralidade de pensamento, um traço geracional, que não é com bravata no Senado que você vai impedir isso. Nada disso vai mudar o voto do cara."

A razão é simples: da tríade "tradição, família e propriedade", muitos deles só tem a família. Outros, nem isso.

Pastora Ana Rita Reis: testemunho da conversão após perder os dois braços é um dos mais conhecidos na região - MOV.doc - MOV.doc
Pastora Ana Rita Reis: testemunho da conversão após perder os dois braços é um dos mais conhecidos na região
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No quintal de casa: igreja Comunidade Evangélica Fé, Vida e Graça, da pastora Ana Rita Reis - MOV.doc - MOV.doc
No quintal de casa: igreja Comunidade Evangélica Fé, Vida e Graça, da pastora Ana Rita Reis
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Entre a política e o quartel

O pastor Merival Barroso, 44, veio de família com tradição militar. Evangélico há mais de 10 anos, está à frente do Ministério Apostólico Gerando Vida, na comunidade do Moinho (nos fundos de Barra do Pojuca), onde recebe dependentes químicos, a maioria resgatados do tráfico de drogas.

Numa casa grande, adolescentes e adultos respeitam ordens como num quartel. Corpulento e alto, ele veste calça camuflada e camiseta verde, tal qual um general, e orienta aos berros: "Marchar!".

Na noite anterior, ele contou, esteve na delegacia. "Eles prendem pessoas que nada têm a ver com tráfico e com o crime. Muitas mães me procuram. Saio daqui meia-noite para a delegacia e a polícia me devolve esse jovem, porque eles sabem que eu faço meu trabalho aqui", disse. "A polícia não consegue chegar onde a gente consegue chegar. A gente veio do inferno das drogas, então a gente acredita piamente que dá pra salvar", explicava, enquanto seu "exército", munido de vassouras e pás, limpava as vias do bairro.

A voz grave e o jeito durão logo dão lugar às lágrimas. "Somente Deus pode tocar no coração de alguém que já viu um assassinato. Eu abraço 20 e salvo 5. E a polícia mata os 20."

O trabalho o impulsionou para a política em 2020 — "um chamado de Deus", ele resume. Candidatou-se a vereador por Camaçari, mas não venceu. "O pessoal não quer um pastor como eu na política. Dizem que vou defender bandido. Preferem um charlatão."

Para as eleições, Merival afirmou que, pelo menos para os evangélicos, terá mais votos quem prezar pela família no modelo bíblico. "Qualquer político que defender essa bandeira vai agradar à igreja", disse.

"No passado alguns partidos diziam que os pastores teriam de casar pessoas do mesmo sexo. Não dá. Querem agredir a igreja e não conseguem enxergar o trabalho que uma igreja faz. Por isso o Bolsonaro se elegeu presidente — é como se ele fosse um pastor. Só não sei se ele vai continuar, porque a economia no país...", afirmou Barroso. "Hoje, no projeto, eu não tenho carne. Só tenho arroz e feijão. A igreja está em alerta."

Ser evangélico: pastor Merival Barroso à frente do Ministério Apostólico Gerando Vida, na comunidade do Moinho, em Camaçari (BA), onde recebe dependentes químicos, a maioria resgatados do tráfico de drogas - MOV.doc - MOV.doc
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Pastor Merival Barroso na frente do Ministério Apostólico Gerando Vida, onde recebe dependentes químicos, a maioria resgatados do tráfico de drogas - MOV.doc - MOV.doc
Pastor Merival Barroso na frente do Ministério Apostólico Gerando Vida, onde recebe dependentes químicos
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Hora do voto

Os evangélicos passaram a ser cada vez mais cortejados por políticos. Isso marcou o comportamento de muitos fiéis que antes fugiam do tema.

"Antigamente, política era coisa do diabo", explica Cremilda Falcão, 54, frequentadora da Assembleia de Deus. Comunicativa e assertiva, ela comanda a escolinha infantil nos fundos da igreja e reúne mulheres evangélicas do bairro para discutir o Evangelho e o mundo.

"Os evangélicos só passaram a ser conhecidos depois desse presidente aí. Todo mundo fala: 'ah, eu não sabia' [da força dos evangélicos]. Eu sabia! Eu já discursava isso para as mulheres: deixa de ser boba, 60% dos evangélicos são mulheres. A gente precisa criar uma frente pra nós."

A orientação de Guinha, como é mais conhecida em Barra do Pojuca, é olhar para os candidatos que têm propostas para o eleitorado feminino. "Se tiver pra gente, tem pra todos", diz. "Mas é bom a gente lembrar que ele não vai também governar só para o evangélico. Tem o Brasil inteiro."