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'Progressista ri de evangélico', diz autor de livro sobre bolsonarismo e fé

Do TAB, em São Paulo

26/09/2022 04h00Atualizada em 26/09/2022 15h39

Por muito tempo, o jornalista Ricardo Alexandre, 47, separava sua vida com um muro. A espiritualidade, que ele praticava na intimidade como evangélico, não invadia a esfera secular - atuando como prestigiado jornalista musical.

"Eu sei de comentários e piadinhas que me cercaram por trinta anos", diz, sobre sua fé. "Mas hoje em dia eu digo: não desligue a percepção de que há realidades imateriais. Eu trabalho com música. Eu acredito que a espiritualidade é o que explica esse tipo de coisa."

Convertido ainda jovem, Alexandre frequenta a Batista Água Viva. Ele é autor de livros premiados como "Nem vem que não tem: A vida e o veneno de Wilson Simonal", biografia vencedora do Prêmio Jabuti, em 2010, e mantém o elogiado podcast "Discoteca Básica". Porém, desde a eleição de 2018, vem observando uma mudança de comportamento entre os amigos com quem compartilha a mesma fé e doutrina.

Decidiu investigar Jair Bolsonaro e sua ascensão dentro do segmento evangélico, uma de suas principais bases eleitorais, no livro "E a verdade os libertará: reflexões sobre religião, política e bolsonarismo", publicado em 2020.

Ricardo Alexandre foi entrevistado para o documentário sobre evangélicos no Brasil, com dois episódios, lançado nesta segunda-feira (26) por MOV.doc e TAB, onde ele analisa os evangélicos como um grupo diverso, muito diferente da massa uniforme vista por quem está fora das igrejas.

Leia a seguir trechos da entrevista com ele:

TAB: De quem a gente fala quando estamos falando de evangélicos na política?

Ricardo Alexandre: Há duas respostas, e ambas apontam para a diversidade. Do ponto de vista social, das pessoas que se identificam como evangélicos para o IBGE, significa ser um brasileiro que foi de alguma maneira impactado pela ação das milhares de igrejas evangélicas que existem no Brasil. Estatisticamente falando, significa ser pobre, mulher, preta e ligada a alguma denominação sem ligação com as tradições históricas. Esses pastores que dizem representar os evangélicos podem, no máximo, falar por sua denominação. Ser impactado por alguma dessas igrejas significa ter tido acesso a um nível de cura social, acessar a palavra escrita pela primeira vez. Significa que o filho aprendeu a tocar teclado para o louvor da igreja. Significa que o marido parou de espancar a mulher porque parou de beber, graças à ação do Evangelho. Significa que agora a casa tem reboco, porque o pastor conseguiu um financiamento na loja de material de construção que é de um irmão da igreja, com crédito que o banco não deu. Significa romper um projeto de pobreza e de exclusão social que foi fundado no Brasil 500 anos atrás. Na maior parte dos templos, os pastores dão expediente e, nos fins de semana, é que trabalham como pastores. Ou você acha que a maior parte anda de jatinho igual ao [Silas] Malafaia? Não é verdade.

Livro "A Verdade os Libertará", de Ricardo Alexandre (ed. Mundo Cristão) - Divulgação - Divulgação
Livro "A Verdade os Libertará", de Ricardo Alexandre (ed. Mundo Cristão)
Imagem: Divulgação

TAB: E no campo da doutrina?

Alexandre: Essa é uma resposta igualmente decepcionante, do ponto de vista da caracterização. Ser evangélico é não se prender a dogmas ou a catecismos. Do ponto de vista de um católico romano, isso é um absurdo. Para o evangélico, é um preço pequeno a se pagar pelo direito de interpretar a Bíblia do jeito que lhe der na telha. Há igrejas que se aproximam dos cultos afro - que elas tanto demonizam -, que têm banho de arruda, culto do descarrego. Se existe uma igreja com vinte membros e você discorda da interpretação daquele pastor, na semana seguinte você pode montar sua própria igreja. E aí você faz, por direito, a "Igreja do Ricardo Alexandre dos Últimos Dias". É absolutamente fragmentado, incaracterizável, do ponto de vista doutrinário.

TAB: Até pouco tempo eles eram vistos como minoria. E agora que eles estão crescendo?

Alexandre: Pelo que observo, o discurso evangélico ainda é próprio da minoria e dos marginalizados. É reativo: "nós não admitimos isso. Aquilo nos desagrada. Aquilo é errado". Ok, o aborto desagrada a Deus, mas qual a proposta de educação sexual? Como se comportar num espaço onde o microfone passa na mão de todo mundo? Certamente não é calando o outro. Regimes democráticos — e ainda vivemos em um no Brasil — pressupõem liberdade de expressão para crentes e ateus, em idêntica medida.

Muitas igrejas evangélicas em Barra do Pojuca, bairro popular de Camaçari (BA), mantém escolas para crianças - MOV.doc - MOV.doc
Muitas igrejas evangélicas em Barra do Pojuca, bairro popular de Camaçari (BA), mantém escolas para crianças
Imagem: MOV.doc

TAB: Existe um valor único que une essas pessoas?

Alexandre: Um dogma cristão é que Deus se revela por meio da Bíblia. Entretanto, algumas igrejas são mais baseadas na cabeça dos líderes do que no Livro Sagrado - lugares onde seus membros, diante da contradição entre a Bíblia e o pastor, sem dúvida nenhuma escolheriam o pastor. Há muitas razões para alguém estar ligado a uma igreja sem ser "convertido", por interesse particular - "meu marido está longe do boteco, aqui eu recebo cesta básica, aqui o louvor é gostoso, o pastor fala coisas que alimentam o meu coração". Na segunda-feira, as pessoas estão ouvindo Silas Malafaia na televisão. Na terça, estão colocando o copo em cima da televisão para a oração da Universal. Na quarta, vão à benzedeira. A gente precisa lembrar que o católico brasileiro era o cara que estava no domingo no templo e, na segunda-feira, estava tomando passe num centro espírita, esse trânsito sincrético por aqui é comum. No frigir dos ovos, a autoridade máxima é a cabeça dele mesmo, formada por um monte de ideias de pastores, grupos de WhatsApp, boatos, fake news e teologias. E estamos falando de Brasil: não é que a pessoa não lê a Bíblia, ela simplesmente não lê. A educação aqui é um privilégio, não um direito.

TAB: A influência da TV nos trouxe até aqui?

Alexandre: Tudo isso é complexo, claro, mas o televangelismo quebrou essa relação de comunidade, de pastoreio, de "uns aos outros". O que deveria ser troca vira mídia. Você transforma o que deveria ser testemunho em proselitismo, e o que deveria ser um espaço de compartilhamento em espaço de venda. Outro fator destrutivo é a banalização do narcisismo. Pastores com fotos tiradas de baixo para cima, com o dedo em riste, com frases lapidares. Isso é idolatria condenada pela Bíblia, mas já está normal. Quem sobrevive na selva do zapping se não for narcisista, se não se expressar feito um ídolo pop? Pouca gente.

TAB: Como você vê a chegada de Jair Bolsonaro a esse cenário?

Alexandre: O mérito do presidente foi o de ter reconhecido a legitimidade dos medos e sonhos de um estrato monumental social brasileiro. Os progressistas riem dessas pessoas, tentam deslegitimá-las como força política. Por que eles não podem ter um senador? É legítimo que eles queiram o microfone. A esquerda consegue enxergar o quilombola não-binário da extrema periferia de uma cidade e não consegue enxergar 50 milhões de brasileiros. A gente pode olhar essas cenas e entender o contexto, o oportunismo, esses medos fantasiosos. Dane-se. Não é isso que se comunica com 50 milhões de brasileiros. Eles vão votar baseados no medo de perderem liberdade de expressão, no medo de terem sua fé criminalizada e no seu sonho de ter uma família tradicional, constituída e valorizada pela cultura vigente. Da tríade "tradição, família e propriedade", eles não têm tradição, não têm propriedade, e de repente sentem que sua família está ameaçada, seja pelo divórcio, pela promiscuidade, e pelo que se convencionou chamar de "ideologia de gênero".

Ser evangélico - Jornalista e escritor Ricardo Alexandre, autor do livro "E a verdade os libertará" - MOV.doc - MOV.doc
Imagem: MOV.doc

TAB: Qual a importância das redes sociais para criar essa identificação?

Alexandre: A lógica dos algoritmos é empurrar as pessoas para os extremos. É por isso que hoje a gente vê igrejas se dividindo por causa de política, porque não se reconhece mais o vínculo comunitário com quem não pensa igual - distorção brutal do Evangelho. O Brasil é o terceiro no ranking de "penduramento" em redes sociais. Trocamos, convictos, o jornalismo profissional pelos boatos de WhatsApp. Os efeitos são imprevisíveis, e tem gente se aproveitando disso. Há pastores que sobem no púlpito para dizer que é impossível ser cristão e ser de esquerda. E Martin Luther King, que ia para a rua para lutar pelos pelos direitos civis dos negros? Tinha outdoor nos Estados Unidos chamando ele de comunista. Esses caras não são cristãos? A gente pode passar horas debatendo quão ignorantes de história essas pessoas são, quão desalinhadas ao Evangelho estão, o quão geracional é tudo isso, mas elas vão votar em outubro e precisam ser ouvidas e respeitadas como brasileiros.

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