'Eu vivo o hoje': empréstimo do Auxílio Brasil é usado para pagar contas
Às 8h30 de quinta-feira (13), uma hora e meia antes da abertura da agência da Caixa Econômica Federal no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte, dezenas de pessoas já se apinhavam à porta do banco. A maioria com um mesmo objetivo: contratar o empréstimo consignado do Auxílio Brasil, que começou a ser liberado pelo governo federal em 11 de outubro.
Em apenas três dias, a Caixa liberou R$ 1,8 bilhão em empréstimos para 700 mil beneficiários do Auxílio Brasil e do BPC (Benefício de Prestação Continuada).
Flávia Maria de Andrade, 53, era uma delas. Ela está sem emprego com carteira assinada há quase cinco anos, época em que passou a cuidar do filho, que teve uma crise de esquizofrenia. Sua única fonte fixa de renda é o Auxílio Brasil, no valor mensal de R$ 600. O dinheiro, porém, não dá para as despesas básicas, como alimentação e moradia. Para saldar dívidas acumuladas nos últimos meses, ela decidiu tomar o empréstimo de R$ 2.300.
Com juros mensais na casa dos 3,45%, as parcelas de R$ 160 serão descontadas diretamente do benefício que Andrade recebe do governo ao longo dos próximos 24 meses. Os aluguéis vencidos, e sobretudo as contas da clínica onde seu filho está internado, convenceram-na de que não havia outro jeito senão apertar — ainda mais — o orçamento.
'Abri mão de tudo'
Há sete meses sem entrar num supermercado, Andrade se alimenta pouco, às custas de doações da família e de amigos. Todo o dinheiro que cai em sua conta é empregado no aluguel, nas contas de luz e nas faturas do cartão de crédito, todas atrasadas. "Não vou nem encostar no dinheiro desse empréstimo. Abri mão de tudo para salvar o meu filho", conta.
Depois do diagnóstico de esquizofrenia, seu filho, na época com 22 anos e estudante de educação física, passou a ser medicado pelo SUS. Mas o longo intervalo entre as consultas e a intensidade das crises o tiraram do prumo, e ele acabou largando os estudos e tornando-se dependente de drogas. Sua saúde mental deteriorou-se, e o mesmo aconteceu com ela, que foi acometida pela depressão e pela síndrome do pânico, ficando incapacitada de trabalhar.
Com a intenção de afastá-lo das ruas, em 2021 Flávia o internou numa clínica privada, ao custo mensal de R$ 1.800. Para pagar o tratamento, acionou a Justiça para que o pai do rapaz lhe pagasse pensão, tentou aposentar-se por invalidez e foi atrás de um auxílio-doença da previdência social para o filho.
Sem sucesso nas duas últimas empreitadas, restou a ela tomar o empréstimo. A incerteza sobre a continuidade do Auxílio Brasil no ano que vem não é a maior de suas preocupações agora.
"Nunca me senti segura com esse tipo de benefício que o governo oferece. Na mesma hora que temos o direito, também não temos. Teve uma época em que eles tiraram o auxílio, né? Não dá pra contar com esse dinheiro. A verdade é que, pela proximidade da eleição, eles abriram essa brecha", afirma ela.
Flávia presta serviços esporádicos numa gráfica em Betim, e é com os proventos desse trabalho que ela pretende pagar o empréstimo. Em seu dia a dia atribulado, não há espaço para mais planejamentos ou expectativas de futuro. "Não acredito em melhoras no ano que vem. Eu vivo o hoje."
'Dívida vai pro governo'
O sol das 11h fustigava os integrantes da fila sem sombras na porta da Caixa quando os primeiros beneficiários deixaram o banco contentes, com o empréstimo garantido. O marceneiro Cícero Pereira, 40, pegou R$ 2.200 emprestados. Embora no ato da contratação tenha assinado um termo, garantindo que fizera as contas necessárias e que poderia honrar sua dívida, foi uma falsa notícia que o motivou a tomar o dinheiro no banco.
"Vai trocar de governo, e aí não sabemos o que pode acontecer. Esse auxílio vai acabar e nós não vamos pagar o empréstimo. A conta vai ficar para o próximo presidente", disse ele que, apesar dos juros mensais, afirma que guardará o montante no banco.
Quando a reportagem do TAB avisou ao entrevistado que, com ou sem o Auxílio Brasil, a dívida permanecerá responsabilidade sua, Pereira duvidou: "Não, moço. A dívida vai pro nome do governo. Eu vi a notícia na internet".
Desejo de empreender
Uma funcionária da Caixa se dirigiu aos que esperavam a vez. Explicou que o sistema estava fora do ar em todo o país e que aqueles que estavam ali pelo empréstimo não conseguiriam se cadastrar. Frustrados, quase todos dispersaram.
Não fosse a pane no sistema, Adriano Rosa da Silva, 52, teria contratado R$ 2.500. Seu desejo é comprar uma "televisão de cachorro" — isto é, uma máquina de assar frango para usar no Alto Vera Cruz, na periferia de BH, onde reside. "Assim posso arrumar uma nova renda e não depender mais do auxílio", planeja.
Desempregado há três anos, Silva tem enfrentado dificuldades. Fora os bicos que faz duas vezes por semana, também numa gráfica, seu único rendimento é o Auxílio Brasil. Mora com dois sobrinhos, que não têm emprego de carteira assinada, e as contas de luz e água da casa estão atrasadas, bem como a fatura de seu cartão. "Se eu não fosse dono da casa e tivesse que pagar aluguel, acho que tava era na rua", relata.
Da Caixa, Rosa foi direto para o centro da cidade, em busca de outras financeiras habilitadas pelo ministério da Cidadania a operar o empréstimo consignado. Além da Caixa, outras 11 instituições estão autorizadas a fazê-lo — entre elas a Zema Crédito, que tem entre os sócios o governador reeleito de Minas Gerais Romeu Zema (Novo), que declarou apoio a Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais.
Discordâncias no setor bancário
Alguns dos maiores bancos do país preferiram não participar do programa. "Entendemos que não é o produto certo para um público vulnerável", explicou Milton Maluhy Filho, presidente do Itaú Unibanco, durante a apresentação dos resultados da empresa no segundo trimestre deste ano. "Em vez de ser uma boa operação para nós e para o cliente, entendemos que a pessoa terá mais dificuldade quando o benefício cessar", argumentou, em comunicado à imprensa na mesma época, o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Júnior.
Na segunda-feira (17), o relógio marcava 10h15 na fila da Caixa quando aconteceu outra queda no sistema. Desde as 7h aguardando sua vez, a vendedora ambulante Mariana da Silva, 59, mãe de quatro filhos e avó de seis netos, ficou revoltada.
Ela usaria o empréstimo para comprar mantimentos para a casa e mercadorias para comercializar nas ruas. "Foi mais um corre perdido", lamentou. "Tirei de onde não tinha para pagar a passagem de ônibus e não consegui esse empréstimo de migalhas. Eles querem esperar até o dia da eleição, pra gente dar os nossos votos para eles? Devem achar que a gente é trouxa, só pode."
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