Na 'Champions Lama', jogadores fazem copa de futebol no mangue
Tem preleção, aquecimento, torcida animada e juiz recebendo xingamentos. Poderia ser qualquer partida de futebol do Brasil, mas ali no bairro Bom Pastor, zona Oeste de Natal (RN), o campo carrega suas particularidades: a disputa pela bola acontece em meio à lama numa área de mangue. A "Champions Lama" potiguar é um campeonato duro, disputado e que acontece há três anos com uma única exigência: um campo de futebol em condições totalmente adversas.
É manhã de abertura da Copa do Mundo e os olhares de (quase) todo o planeta estão voltados para a disputa que aconteceria logo mais entre o anfitrião Qatar e o sul-americano Equador. Quase, porque na capital do Rio Grande do Norte torcedores e jogadores natalenses estão vidrados na semifinal do campeonato de futebol no mangue entre o Bom Pastor — time de uniforme verde e preto que leva o nome do bairro — e o Guimassu, também ali das redondezas, vestindo roupa azul e preta.
São 9h07 quando o árbitro se prepara para dar o apito inicial e se hidrata na mesa da organização, ao lado do campo. Quem passa ali ao lado aproveita as poças entre as quatro linhas para limpar os chinelos. Jogadores se aquecem e crianças brincam lambuzadas de lama quando um chute resvala um pouco da sujeira no árbitro, para a reclamação do juizão. "Eu nem entrei e esses homens já querem me melar, é?", reclama.
O dono do apito é Paulo Roberto Gomes, o Paulão. Alto, com um topete cuidadosamente alinhado, ele se orgulha de, há dois anos apitando no local, nunca ter caído no lamaçal. "O único que não se mela sou eu".
O nome oficial do torneio é Copa Vereador Luciano Nascimento, em homenagem ao parlamentar que assumiu seu patrocínio nos últimos dois anos, mas o apelido "Champions Lama" grudou e não sai mais. Ranilson Melo da Silva, 42, um dos organizadores e também treinador do Fluminense local, explica que dez times fazem parte do torneio, que acontece no formato de pontos corridos. Ao final, oito times se classificam e vão para o mata-mata. Ranilson lamentava que, na semana anterior, seu time foi batido pelo Mangue Seco por 3 a 0 — uma lavada, digamos assim.
A bola (não) rola por aqui
A disputa, que dá direito a medalha, troféu e premiações de R$ 3 mil para o campeão e R$ 1,5 mil para o vice, é ainda mais acirrada por causa de um "jogador a mais": "Acho que você está vendo aí: a lama", aponta Ranilson. "Com a lama você não se mantém em pé. É muito difícil jogar. No campo normal, a bola rola normalmente. Aqui tem dificuldade por causa das poças d'água", explica.
"Às vezes um jogador pega a bola, a gente acha que vai bater no gol mas ele escorrega, não tem como se controlar em pé", diverte-se. Isso quando o dia não é de maré cheia e o campo literalmente alaga. "Este ano teve dois jogos adiados porque a maré tava tão grande que não tinha como jogar, não", conta o técnico e organizador.
Para chegar até a arena, é preciso entrar numa rua estreita do bairro. Numa viela ainda mais apertada na lateral da rua, casas se apinham no beco que leva até a área do manguezal. Há até uma espécie de "camarote". A porta de trás da casa de José Maria da Silva, 45, conhecido como "Poloquinha", possui vista privilegiada para o campo. Lá em frente, torcedores se juntam para acompanhar a partida em pé, embora a rivalidade se faça presente: de um lado, a torcida do Bom Pastor; do outro, os fãs do Guimassu. Não há divisória. Poloquinha é quem mantém a ordem: "Se [for de] arranjar briga não venha pra cá, não."
O "dono do camarote" morou ali a vida toda. "É uma maravilha ter esse campo. A gente brinca nele desde pequeno", conta. Poloquinha já jogou muito mas está aposentado do futebol na lama. Agora, aproveita os dias de partida para ganhar uma renda extra: vende sorvete, dindin (ou sacolé), suco, cerveja e cachaça. "E aturo esses bêbados aqui", brinca, apontando para os visitantes.
Embora jogar na lama remeta a brincadeira, o campeonato é coisa séria. O jogo é disputado e muitas vezes a bola costuma ser isolada para a área de matagal. A tarefa ingrata de ir buscar o objeto perdido fica então com o gandula, uma criança que circula de galochas para facilitar a corrida no terreno lamacento.
'Comeu cuscuz'
"Eu não quero nenhum jogador desistindo não, p*!" A torcida na Champions Lama mantém a tradição futebolística da cobrança aos jogadores e dos impropérios ao juiz. Uma moça alta e de óculos é uma das mais exaltadas. "Pitoca tá sozinha, ajuda Pitoca!", grita, apontando um atleta enlameado. "Não deixe o time descer para chutar, não", grita outro torcedor, a plenos pulmões. Outra mulher faz questão de incentivar o número 6 do Bom Pastor: "Bora, Adelson. Você tá forte. Comeu cuscuz".
O primeiro cartão vem aos 8 minutos: amarelo para o Bom Pastor com muita reclamação da torcida. "Pra gente é fácil, pra eles que tão aí dentro é difícil", adverte um homem. As provocações ao árbitro Paulão seguem, e ele faz questão de dar sua resposta. Com um sorriso no rosto, faz um sinal de coração com as mãos para quem o assiste gritando palavrões.
A partida, que acontece em dois tempos de 30 minutos cada, termina em 0 a 0 na primeira etapa.
"Criamos uma chance, eles também. Vamos focar para entrar no segundo tempo do mesmo jeito, determinados, e tentar a classificação para a final", incentiva os colegas Gabriel Farias, um dos destaques do Bom Pastor. O campo certamente não ajudou, mas Gabriel não se queixa: "Quem gosta de futebol joga em qualquer canto."
Jackson Aguiar, o camisa 10 do Guimassu, também vai para o intervalo confiante: "A gente começou um pouco perdido, mas vamos pro segundo tempo aí, se Deus quiser, acertar as coisas, botar a bola no chão, quer dizer, na lama, e fazer o gol." Na humildade, o craque do Guimassu confessa: "A maior dificuldade, primeiramente, é ficar em pé. A bola não corre, então tem que ser um pouco mais cauteloso, o negócio não é velocidade."
Bola na rede
A nova etapa inicia e o gol finalmente aparece. Num ataque do Bom Pastor, a bola é lançada para a área, sobra na cabeça de Gabriel Farias, que só tem o trabalho de escorar para as redes. Delírio da torcida.
A pressão sobre o Guimassu deixa os ânimos à flor da pele. O banco do clube reclama a todo instante com a arbitragem. Num desentendimento que parece não ter fim, Paulão ouve o que quer e o que não quer. Depois, distribui punições aos reservas do time: quatro expulsos com cartão vermelho. "Renilson, presta atenção no banco aqui", avisa o juiz para o organizador da pelada.
O jogo vai se encaminhando para o final, com seguidas reclamações e escorregões na lama. O Guimassu mantém a garra a todo instante, mas os esforços são em vão. Quando o árbitro sinaliza fim de jogo, o Bom Pastor parte para o abraço.
"Nosso time é merecedor demais. Na metade do campeonato perdemos o pai do dono do time. Essa final é para ele e vamos ser campeões, se Deus quiser", comemora Gabriel, que manda um beijo para sua esposa. Paulão, no entanto, ainda tem uma tarefa: resolver a bronca do time do Guimassu, inconformado com sua arbitragem. Mas o experiente juiz — que, quando começou na lama, já apitava há seis anos em campos e quadras convencionais — ressalta que a irritação faz parte da disputa.
"Semifinal em todo canto vai ser desse jeito, tenso. Todo mundo quer ganhar, disputar cada bola. Jogo de mata-mata vai ser sempre essa vontade toda. O que não pode ter é deslealdade", ensina.
Na rua, a comemoração segue sob um paredão de som com música para exaltar a conquista. Depois da festa é preciso descansar. Dia 4 de dezembro o Bom Pastor encontra o Mangue Seco para a finalíssima da copa. Até lá, Gabriel espera dedicar novos beijos à esposa. Já Paulão planeja terminar mais um jogo sem o corpo inteiro enlameado.
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