'Puro ódio': maquiadora que perdeu carro em ato bolsonarista votou nulo
O relógio marcava 19h quando Gabriela de Almeida Braga terminou um atendimento na Asa Sul, centro da capital do país. Ao entrar em seu carro, quitado há apenas dois meses, a maquiadora de 29 anos recebeu uma mensagem de uma amiga convidando-a para jantar. Dirigiu-se até um restaurante que fica na cobertura de um hotel na Asa Norte. Cerca de uma hora depois, Gabriela viu do alto do prédio o seu veículo ser incendiado por um grupo vestido de verde-amarelo.
Além do carro, o fogo consumiu também todo o seu material de trabalho que estava no porta-malas: um prejuízo estimado em R$ 53 mil. Na mesma noite, outras sete pessoas tiveram seu patrimônio destruído por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
A região, que abriga hotéis luxuosos, shoppings e restaurantes, virou cenário de guerra na última segunda-feira (12). Além dos ataques incendiários, um grupo de manifestantes tentou invadir a sede da PF (Polícia Federal) após a decretação da prisão de um dos líderes do movimento que pede golpe militar contra o novo governo brasileiro, eleito democraticamente: o indígena José Acácio Serere Xavante.
Há alguns dias, Acácio ganhou notoriedade em grupos bolsonaristas por questionar, sem provas, a lisura do pleito que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com 60,3 milhões de votos.
'Nunca passei tanto medo'
A maquiadora viu de longe o Sandero 2015/2016 de cor prata ser consumido pelas chamas. Gabriela, que desceu as escadas para tentar apagar o fogo, foi impedida pelo grupo, que bloqueava a saída do hotel com pedras, bombas e botijões de gás.
"Eu já sabia que não iria conseguir salvar o carro, mas pensei nas maquiagens, bases, pincéis, paletas de sombras, tudo estava lá", diz. "Mas ao ver o rosto daquelas pessoas, que tinham expressões de puro ódio, tive que fazer uma escolha: salvar meus produtos ou viver. Em 29 anos, nunca passei tanto medo."
Gabriela recebeu a reportagem na casa da avó, que fica a 36 km de distância de onde o ato terrorista ocorreu. Abatida, a autônoma justificou a falta de maquiagem no rosto, que revelava as noites sem dormir desde o ocorrido. "É só fechar os olhos que lembro de tudo. Estou perdida, sem direção. Minha vida virou de ponta-cabeça."
A carcaça do carro, avaliado em R$ 50 mil, está na sede da Polícia Civil, no Sudoeste. Um dia após o ocorrido, a maquiadora registrou boletim de ocorrência na 5ª Delegacia de Polícia — que também foi alvo dos manifestantes, que quebraram a porta de vidro do local.
Sentimento de impotência
"No dia desse ato violento, que eu não considero uma manifestação, mas sim um crime, ficamos duas horas trancados no restaurante. Enquanto tudo acontecia, só consegui ligar para a minha mãe. Eu só sabia chorar e me revoltar com o que estava acontecendo, um sentimento de impotência horrível", conta Gabriela.
"Depois, foi uma dificuldade conseguir chegar em casa. Todos os aplicativos de transporte não aceitavam as corridas. Só depois que a polícia dispersou [o ato], foi que conseguimos um carro. Cheguei em casa depois da 1h da manhã."
O Distrito Federal registrou uma vitória expressiva nas urnas do presidente Bolsonaro: no segundo turno, ele obteve 58,81% dos votos, contra 41,19% de Lula. Gabriela conta que votou nulo, por não concordar com nenhum dos lados.
Solidariedade das amigas
Além de usar o veículo como meio de trabalho, já que atende as clientes em domicilio, Gabriela precisa dele para levar os filhos, de 6 e 4 anos, na escola. Mãe solo, a maquiadora conta que se preparava para contratar um seguro para o carro quando o perdeu.
"Moramos eu e meus filhos. Não tenho ajuda do pai das crianças, então sempre fui eu por eles. Por isso o meu desespero maior, entende? Agora, estou me virando como posso para levá-los. Uma luta de anos se perdeu em poucos segundos. Ainda é difícil de acreditar."
Ao ver o desespero de Gabriela, as amigas da maquiadora criaram uma vaquinha virtual para custear um novo carro para a autônoma. A meta é de R$ 50 mil e, até a publicação da reportagem, cerca de R$ 36 mil haviam sido arrecadados. Doações de pessoas que se solidarizaram com a perda da jovem chegaram do país inteiro. Na descrição da plataforma, as colegas escreveram: "Gabi mora na cidade satélite de Brasília, e usava seu carro popular, antigo (não tinha seguro), que adquiriu com muito esforço para trabalhar todos os dias como maquiadora, para atender suas clientes, levando seu material de trabalho. Ela é uma pessoa do bem, uma mãe amorosa, trabalhadora, que perdeu tudo, injustamente, por culpa de vândalos, criminosos."
No próximo sábado (17), Gabriela tem um atendimento marcado. As próximas clientes, serão maquiadas com utensílios recebidos de doações feitas por marcas e outras profissionais que entraram em contato. "Estou encantada com tanta força que venho recebendo, sinceramente não esperava. Um grupo de maquiadoras do país inteiro se juntou e me mandaram materiais novos pelos Correios. Isso tem sido minha força: o apoio de pessoas que eu nem conhecia", diz.
Nenhuma prisão
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, até o momento nenhum participante do ato criminoso foi preso. A pasta justificou a falta de prisões afirmando que teria sido a melhor estratégia para conter os atos violentos. "Para redução dos danos e para evitar uma escalada ainda maior dos ânimos, a ação da Polícia Militar se concentrou na dispersão dos manifestantes", afirma a Secretaria, em nota.
"Esses atos, praticados por grupos isolados, estão sendo apurados pela Polícia Civil do Distrito Federal e os participantes, uma vez identificados, serão responsabilizados." Após recuperar o carro, por meio da vaquinha, Gabriela pretende se reunir com outras vítimas e entrar com uma ação na Justiça.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.