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'Não sei se sinto dó ou raiva': o que dizem as famílias de golpistas

"O ego deles não deixa assumir que algo deu errado. Ninguém consegue dar o braço a torcer", diz Roberto, sobre os parentes que passaram os últimos meses em acampamentos bolsonaristas - Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress
'O ego deles não deixa assumir que algo deu errado. Ninguém consegue dar o braço a torcer', diz Roberto, sobre os parentes que passaram os últimos meses em acampamentos bolsonaristas
Imagem: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

12/01/2023 04h01

"Meus familiares já eram bolsonaristas antes de Bolsonaro aparecer", diz Roberto Lemos, 38, publicitário baiano que vive em São Paulo. Ele se refere aos parentes que passaram os últimos anos em discussões com o restante da família para defender o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e, principalmente, para atacar a esquerda.

Nos últimos meses, as discussões e fake news em grupos de WhatsApp e conversas inflamadas nos almoços de família mudaram para a frente do quartel em Salvador — e culminaram em desculpas de que a destruição causada pela tentativa de golpe em Brasília, no domingo (8), não teve participação dos grupos golpistas (teve).

Três tias de Roberto passaram os últimos meses em acampamentos, com o objetivo de levar comida e água aos "bravos guerreiros brasileiros". "Essa história começou em 2014, com elas defendendo a direita. Ali começaram as brigas, mas longe desse estágio doentio", conta. No Natal de 2019, após algumas provocações, ele desistiu de frequentar as festas de família. Mas sente pela mãe, que sofre com o distanciamento dos irmãos.

"Ela me liga muito triste. É o alvo de todos que se retroalimentam da agressividade e ficam tentando caçar confusão. Acabaram os argumentos reais e lógicos a favor de Bolsonaro e eles passaram a usar uma narrativa própria que diz 'deu no WhatsApp'. Parece um mundo paralelo em que as fake news são a lei", conta Roberto. Entre as notícias falsas, a de que petistas infiltrados vandalizaram o patrimônio público em Brasília.

"Parece que o ego deles não deixa assumir que algo deu errado. Ninguém consegue dar o braço a torcer e admitir [o erro]. Enquanto isso, minha mãe fica isolada e, apesar de se preocupar muito em não destruir a família por causa de política, acaba sendo apedrejada. Chegou a um ponto que minha família — inteira baiana — afirma que nordestino precisa se dar mal, já que o Nordeste votou no Lula."

9.jan.2023 | Desmonte do acampamento bolsonarista em Santana, zona norte de São Paulo - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress
Área onde estava o acampamento bolsonarista, desmontado no dia 9 de janeiro, na zona norte de São Paulo
Imagem: Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress

'Avós agressivos'

F.B., 43, passou a ceia de Natal na casa dos sogros porque os filhos adolescentes estavam com saudade dos avós. Mas o clima não era dos melhores: desde as eleições, o casal estava frequentando o acampamento golpista em frente ao quartel da avenida Alfredo Pujol, em Santana, na zona norte de São Paulo.

"Eles iam todo dia, levavam megafones e caixas de som... Não sei se sinto dó por acreditarem e compartilharem mentiras ou se fico com raiva", diz F.B., que preferiu não se identificar para não "piorar a situação". Sua mulher, J.A., 38, desistiu de argumentar com os pais. Quando eles mandam notícias mentirosas no grupo, ela se limita a digitar "fake".

Na ceia de Natal, F.B. até tentou explicar que o correto seria aceitar o resultado das eleições, mas o resto da família desencorajou o diálogo. O neto, de 14 anos, reclamou que o avô ficou ainda mais radical desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), postando todos os dias notícias mentirosas ou montagens.

Desde domingo, após a tentativa de um parente explicar que o golpe era errado e todos condenarem o vandalismo no Congresso, o pai de J.A. saiu do grupo de WhatsApp e se recusou a falar com qualquer outro familiar. "Meus filhos sabem diferenciar e não partem para o conflito. Mas, por outro lado, me corta o coração que eles vejam os avós tão agressivos assim", ele diz.

9.jan.2023 | Desmonte do acampamento bolsonarista em Santana, zona norte de São Paulo - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress
'Eles iam todo dia, levavam megafones e caixas de som...', diz P.B. sobre os sogros que estavam em Santana
Imagem: Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress

'Não foi da noite para o dia'

"Convidamos minha tia para passar o Natal com a gente, em São Paulo, mas ela afirmava que teria uma guerra no país e não sairia de Florianópolis", contou D.Z, 47, que trabalha com marketing digital. A tia frequentou os acampamentos em frente aos quartéis até domingo (8).

No grupo da família, D.Z. tinha contato diário com a tia, que mora a 700 km de distância. "Todo mundo posta fake news e montagens o tempo todo. Logo se percebe que não têm veracidade, mas evitamos conversar sobre o assunto para não ter embate. Adotamos essa filosofia de não dar palco para eles porque nessas situações não tem conversa, sempre vira uma verbalização mais exaltada", diz. A idosa filmava o grupo (muitos idosos, todos amigos) no quartel, pedia apoio do Exército, compartilhava os vídeos por WhatsApp e voltava para casa.

"O que aconteceu no domingo não foi da noite para o dia. O que se vê é um fanatismo que parece saudosismo. Aprendi na escola que a ditadura não foi um período bom, mas eles parecem sentir falta de algo que aconteceu nessa época", diz D.Z., que mostrou posts que circulam no grupo — entre eles, fake news sobre morte de idosos presos em Brasília, quando, na verdade, todos os idosos foram liberados até terça (10).

"Sempre existiu uma oposição, mas nunca houve essa polaridade violenta. As pessoas se afastaram, amigos foram bloqueados. A gente sente falta da época em que as pessoas não tinham tanta raiva assim e podiam apenas discordar", afirma, desapontada.