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Aborto obrigatório, legalização do incesto e mais: o que dizem os golpistas

A esquina ainda tomada por cones e barracas de golpistas, em Santana, na tarde de quinta-feira (5) - Arquivo pessoal
A esquina ainda tomada por cones e barracas de golpistas, em Santana, na tarde de quinta-feira (5) Imagem: Arquivo pessoal

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

07/01/2023 04h00

"A tia do zap está muito melhor informada que a juventude. Eu sei tudo porque eu vejo aqui, olha", diz uma comerciante que tem entre 50 e 60 anos, batendo com força na tela do celular. Ela é uma das frequentadoras da manifestação golpista que fica em frente ao quartel CPOR-SP (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) no bairro de Santana, em São Paulo. Uma chuva fina e os termômetros marcando 17ºC não ajudam o que ela chama de "luta para salvar o Brasil do comunismo". Dentro de barracas plásticas brancas, com pequenas janelas de plástico transparente, cerca de oito pessoas se revezam na vigília, que já dura 68 dias.

A semana não foi pacata como na tarde chuvosa de quinta (5). No domingo (1º), entre choro e exaltação, manifestantes tiraram as barracas do local durante a posse do presidente Lula em Brasília. Com as ruas de São Paulo vazias, devido ao Réveillon, os manifestantes chegaram a um acordo de que não fazia sentido continuar ali.

"Não temos mais pauta", diziam, enquanto alguns tentavam convencer o grupo a permanecer no local. Apenas uma mulher idosa continuou na calçada - o acampamento tomou a faixa de ônibus durante os meses anteriores -, enrolada em uma bandeira do Brasil. Ela chorou desconsolada até por volta de meia-noite, protegida por uma barricada de cones em volta de si na sarjeta.

Às 2h da manhã de segunda-feira (2), entretanto, o mesmo grupo voltou, agora em menor quantidade. Armaram menos barracas do que antes e disseram que continuariam ali até tudo se resolver. "Tudo o quê?", perguntavam os vizinhos, mencionando a posse de Lula, principal questão do grupo nas semanas que antecederam o evento. "Tudo isso que está aí", foi a resposta.

A primeira semana de janeiro transcorreu com briga. "Está perigoso, peça para eles tirarem essas barracas dali", disse uma comerciante que colabora com o movimento à reportagem. Quando foi informada de que eu não era colaboradora e, sim, jornalista, disse que aquelas barracas já tinham dado o que tinham que dar. Em poucos minutos, mudou o discurso: "Temos que chamar a religião e pedir para Jesus proteger o nosso país, que vai acabar. Temos que lutar até o fim pelo Brasil", dizia, dando socos no balcão de sua loja.

O discurso foi inflamado por outra senhora que apoia a manifestação: "Amanhã o Lula vai legalizar o incesto. Vai ser para facilitar que os pais façam sexo com os filhos. Precisamos proteger nossas crianças", falava, chacoalhando o celular. A informação não é verídica.

Pouco depois, ela se acalmou. Explicou que havia lido que o aborto se tornaria obrigatório, o que também não é verdade, e que ficariam ali para lutar por um país livre de Lula.

Os golpistas por ali afirmam que uma bomba-relógio deve estourar em Brasília até o fim desta semana. A partir daí, começam a salvar o país. "Nunca foi sobre o Bolsonaro, o Bolsonaro foi um acidente. Eles querem trazer o comunismo de volta desde 2018. E vou lutar contra isso. O Alckmin vai assumir logo e ele é o mais comunista de todos", dizia, alarmando duas pessoas que estavam em volta.

"Isso não faz sentido", dizia uma vizinha intrigada. "Também não queria o Lula, mas ele foi eleito e vai governar", completava. Vice-presidente e ministro, Geraldo Alckmin nunca teve qualquer relação com partidos comunistas.

Manifestantes golpistas montam barracas e se concentram em faixa exclusiva de ônibus na rua Alfredo Pujol, em Santana - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
O protesto está há quase 70 dias na rua Alfredo Pujol
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

'Foi pra Disney'

O clima pesou entre os manifestantes na sexta-feira (30), quando o ex-presidente pegou um voo para Orlando, na Flórida. "Saiam daí, Bolsonaro foi pra Disney", gritavam pessoas que passavam de carro. Uma atmosfera de incredulidade tomou o grupo, que logo se apegou ao fato de Bolsonaro não ter alterado suas redes sociais após a posse, mantendo-se como presidente do Brasil na bio do perfil. Uma mulher passou xingando e filmando o grupo e foi agredida por uma das manifestantes. "Soquei ela dentro do carro e peguei o celular para tentar quebrar, mas não quebrou e então joguei de volta", narrou ela aos companheiros. A polícia novamente foi chamada, mas nada aconteceu.

Na segunda-feira, postagens sobre os feitos do governo animaram o pessoal na calçada. "Chamei a polícia na própria madrugada, quando eles montavam as barracas, para evitar que obstruíssem a rua novamente. Atrapalha demais o nosso trânsito por aqui", contou um morador do bairro, que não quis se identificar. Ele afirmou que algumas das integrantes passaram o dia bêbadas, cantando e gritando. "Parece que precisam de uma ideologia para viver, como na música do Cazuza", analisou.

Os carros que passam pela rua Alfredo Pujol não buzinam mais em apoio. Os gritos que se escutam são de "vai para casa", "vai trabalhar, vagabundo". Na noite de quarta (4), um homem chutou a barraca e danificou a estrutura. O grupo rachou entre os que queriam agredir o homem e os que tentavam acalmar os ânimos. A polícia foi novamente chamada e chegou a questionar os manifestantes sobre até quando eles ficariam ali, mas não obteve resposta. "Eles parecem cansados, desnorteados, mas não conseguem desapegar da ideia de ficar ali", contou um homem que sempre passa pelo local.

A circulação de gente diminuiu e a de comida também. Se antes paravam carros no local levando churrasco ou esfihas, hoje o movimento não acontece mais. Gritos como "SOS Forças Armadas" ou "Se precisar a gente acampa, mas o ladrão não sobe a rampa" também não são mais ouvidos. A placa que pedia "intervenção militar" também sumiu: agora se veem no local festivos balões dourados com os algarismos que representam o número de dias que dura a vigília.

Além de frases desconexas sobre instaurar aborto compulsório, incentivar a invasão de apartamentos e facilitar o sexo com crianças, a manifestante que se definiu como "tia do zap" afirma que o sobrinho, estudante da USP (Universidade de São Paulo), já foi doutrinado pela esquerda e não sabe nada. Então, a luta depende deles, ela conta, antes de afirmar que os manifestantes não são amigos. "São pessoas bacanas, honestas, que não usam drogas, que oram e se juntaram para lutar contra o ladrão. Não temos culpa se ninguém acredita naquilo que a gente sabe. Mas quando acabar isso, vai cada um para um lado", revela.

A reportagem pergunta quando vai acabar. Ela dá de ombros. Insisto: até quando ficarão acampados em frente ao quartel? "Até quando precisar. Eu não vou deixar o comunismo se instalar de vez no meu país", ela diz. E segue para dentro da barraca. A chuva estava incômoda, mesmo.

Posicionamento

O ministro da justiça e segurança Flávio Dino prometeu que acabaria com os acampamentos golpistas até sexta (6). A reportagem entrou em contato com a assessoria do Ministério de Justiça na tarde de sexta e obteve o seguinte retorno:
"Sugerimos que a demanda seja direcionada à Secretaria de Segurança Pública do estado."

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo também foi acionada e a resposta foi a seguinte: "A Polícia Militar esclarece que não há registro de chamados para o local, conforme descritos na solicitação. Não há registros de infrações, portanto não houve intervenção."

A reportagem insistiu que a polícia havia sido chamada duas vezes, mas não obteve resposta até o fechamento desse texto, que será atualizado assim que houver novo posicionamento.