'Cidade dos dinossauros', Uberaba (MG) descobre 283 fósseis em nova obra
Com suas pequenas casas em formato padronizado, o Residencial Tamareiras, em Uberaba (MG), pouco difere de outros conjuntos habitacionais construídos nas periferias das demais cidades brasileiras, exceto pelas enormes pilhas com pedaços de rochas levemente amareladas ou cinzentas, acumulando-se em vários pontos da obra.
Aquilo é calcário, matéria-prima da cal e do cimento. Mas o assombroso nesse cenário não é o mineral, mas o que ele escondeu por milhões de anos. Na área onde está sendo construído esse conjunto popular com 467 casas já foram encontrados 283 fósseis.
A quantidade surpreende mesmo quem mora na cidade de pouco mais de 340 mil habitantes, no Triângulo Mineiro, onde é comum encontrar fósseis. Ela está localizada sobre uma formação geológica na qual predomina o calcário (substância essencial para o processo de fossilização, pois penetra nos ossos dos animais mortos, mineralizando-os) e apresenta uma camada de solo muito estreita. Essa característica faz com que sua malha urbana seja um terreno fértil para esse tipo de descoberta.
Em Uberaba, os construtores quase que tropeçam em fósseis. Esses objetos de milhões de anos já foram encontrados em obras de duplicação de rodovias, perfuração de poços e construção de edifícios. Os do Tamareiras, por exemplo, estavam a pouco mais de 2 metros abaixo do solo.
Em 2011, as escavações para a construção do Hospital Regional de Uberaba revelaram fragmentos de um megaraptor, animal carnívoro que podia medir mais de 8 metros. O local fica ao lado do Cemitério São João Batista, onde está sepultado o médium Francisco Cândido Xavier, morto em 2002, aos 92 anos. Não é exagero afirmar que Chico Xavier e as demais pessoas ali enterradas repousam sobre uma imensa necrópole de dinossauros, que se estende por todos os cantos da cidade.
Em 2013, foram localizados dois fósseis durante a construção de um shopping no bairro nobre de São Bento. Dois anos mais tarde, no terreno vizinho — onde seria levantado um condomínio com oito torres residenciais —, pesquisadores localizaram um titanossauro, animal herbívoro que viveu há cerca de 80 milhões de anos e que podia ter mais de 20 metros de comprimento, dependendo da espécie.
Bocha com ovo de dinossauro
Localizado a cerca de 20 km do centro de Uberaba, o bairro rural de Peirópolis possui em torno de 300 habitantes e, no passado, abrigou uma estação da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, que levava ao porto de Santos (SP).
"Próximo a Peirópolis havia um trecho com curva acentuada, onde costumavam ocorrer muitos descarrilamentos. A obra para retificar a ferrovia acabou revelando as rochas de calcário, que chamaram a atenção do DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral], do Rio de Janeiro", explica Thiago da Silva Marinho, 42, coordenador do Centro de Pesquisas Paleontológicas Llewellyn Ivor Price e professor da UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro).
Llewellyn Ivor Price, considerado um dos primeiros paleontólogos brasileiros, faleceu em 1980. Em 1947, a serviço do DNPM, ele passou a trabalhar em Peirópolis e fez um achado real capaz de botar no chinelo qualquer causo do folclore mineiro.
Sua descoberta ocorreu em uma cancha de bocha existente no bairro. Ele não precisou realizar nenhuma escavação para alcançar esse feito. Bastou observar com atenção uma das bolas utilizadas pelos operários da ferrovia. O pesquisador notou que aquela aparente pedra arredondada era, na verdade, um ovo fossilizado de titanossauro, que havia até perdido a casca devido a seu novo uso esportivo. A descoberta, publicada em 1951, foi a primeira dessa natureza ocorrida no Brasil e em toda a América do Sul.
Atualmente, fósseis localizados em Uberaba e na região são encaminhados ao Complexo Científico Cultural de Peirópolis, que é vinculado à UFTM e inclui, além do Centro Price, o Museu dos Dinossauros, onde estão expostas peças originais e também reproduções de animais que viveram há milhares (caso de uma preguiça-gigante) ou milhões de anos (os répteis gigantes da coleção, por exemplo, são do Período Cretáceo Superior).
Em sua mesa de trabalho, Marinho debruça-se sobre mandíbulas de crocodiliformes (animais parecidos com os atuais jacarés, mas com hábitos mais terrestres), restos de caudas de titanossauros e inúmeros outros exemplares. "O que me cativa é fazer descobertas. Se conseguirmos entender como esses animais viveram e foram extintos, podemos retirar lições do passado e prolongar nossa existência neste planeta", afirma.
'Caçador de ossos'
No ramo desde 2011, o paleontólogo Paulo Macedo, 70, atualmente trabalha em uma empresa de consultoria ambiental com sede em Uberaba. "Antes, eu trabalhava como perito judicial. Como eu já havia acompanhado informalmente algumas escavações, o proprietário imaginou que meus conhecimentos poderiam ser úteis para ajudar na busca por fósseis", explica.
Em pouco tempo no novo emprego, ele conseguiu lotar três caixas com suas descobertas, numa única escavação. "Muita gente me diz que tenho dom ou coisa do tipo. Mas penso que tenho sorte", diz. Hoje, Macedo é o principal responsável pelo salvamento de fósseis nas obras em Uberaba e região, além de prestar serviço em outros estados.
"Tem um menino de 6 anos que costuma me chamar de 'caçador de ossos'. Nem me zango. Quando digo para crianças ou adolescentes que sou paleontólogo, os olhos deles chegam a brilhar. Já quando falo isso para os adultos, é comum que muitos olhem com desconfiança", diz Macedo, que está à frente do monitoramento realizado no Tamareiras.
Desde 2015, vigora em Uberaba uma portaria municipal que torna obrigatório o acompanhamento de um paleontólogo nas obras com escavações que atinjam a camada de rochas abaixo do solo, a fim de preservar os fósseis — por lei, esses objetos são considerados propriedade da União.
Terra de Gigantes
Ao longo de 2022, o Museu dos Dinossauros recebeu 120 mil visitantes. Hoje, um projeto pretende ampliar o turismo em Peirópolis e no restante de Uberaba. Figura central à frente das pesquisas paleontológicas na região, o geólogo e professor da UFTM Luiz Carlos Borges Ribeiro, 61, foi quem teve a ideia de criar um geoparque em Uberaba, com 4.540 km² e reunindo locais de interesse histórico e cultural.
O projeto foi tema de sua tese de doutorado, defendida em 2014. Três anos depois, a Prefeitura de Uberaba, a ABCZ (Associação Brasileira dos Criadores de Zebu) e a UFTM assinaram a carta de intenções do projeto "Terra de Gigantes", em referência aos fósseis de dinossauros, ao gado (o município é o principal polo de genética bovina do país) e a Chico Xavier, que, mesmo depois de sua morte, continua a atrair milhares de visitantes à cidade.
Para ser enquadrado nesse conceito da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o território precisa possuir patrimônio geológico a ser preservado (no caso, os fósseis), juntamente de elementos históricos e culturais relevantes.
"O conceito do geoparque busca superar o antagonismo entre desenvolvimento econômico e preservação do patrimônio cultural e geológico. A ideia não é apenas preservar, mas gerar renda e melhorar a vida das pessoas, por meio do turismo", explica Stela Mariana de Morais, 35, diretora do Complexo de Peirópolis e coordenadora do grupo de trabalho de gestão do projeto. O dossiê do geoparque foi enviado à Unesco em novembro de 2022. A vistoria do órgão está prevista para ocorrer em outubro deste ano.
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