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Livraria Cultura: 'Não dá para economizar no humano e investir em tijolo'

Paulo Fridman/Corbis via Getty Images
Imagem: Paulo Fridman/Corbis via Getty Images

Colaboração para o TAB, de Valinhos (SP)

14/02/2023 04h00

Em seu livro de memórias, o livreiro Pedro Herz cita a noite de 21 de maio de 2007, quando reuniu milhares de convidados, de governador a jornalistas, para conferir a novidade: uma megaloja com três andares, teatro, área para fãs de jazz e música clássica, restaurante e café. E muitos livros.

Condenado a virar igreja, o velho Cine Astor e seu incrível pé-direito de 17 metros haviam dado lugar à nova Livraria Cultura, definida como uma "catedral de livros" pelo escritor português José Saramago (1922-2010), logo após a abertura.

"Só São Paulo faria uma livraria assim", saudou o escritor Ignácio de Loyola Brandão numa crônica publicada no Estadão. O impacto da novidade, escreveu o autor de "Não verás país nenhum", foi avassalador. O tradicional ponto de encontro de autores, que aos sábados se reuniam para beber uísque e comer coxinhas e empadas nas mesinhas do Conjunto Nacional, havia se convertido em "um lugar ao mesmo tempo imenso e aconchegante", uma atração turística que em breve se tornaria uma espécie de igreja — como a Nossa Senhora do Brasil, "o ponto sonhado por noivos que adiam o casamento por meses até achar vaga", para lançar suas obras ali.

O fim da Livraria Cultura - Sal, Joao/TBA/Joao Sal - Sal, Joao/TBA/Joao Sal
O livreiro Pedro Herz: 'o negócio atingiu um ponto tal que os livros tomaram conta da nossa casa'
Imagem: Sal, Joao/TBA/Joao Sal

Uma biblioteca circulante

Não parecia, mas o lançamento da autobiografia de Pedro Herz, em 2017, marcaria o começo do fim de um empreendimento iniciado em 1947, quando a imigrante alemã Eva Herz comprou dez livros em alemão para alugar a seus compatriotas de São Paulo. A Biblioteca Circulante, que por anos funcionou em um sobrado sem placa na porta, no número 1.553 da alameda Lorena, nos Jardins, foi a célula-mater da Livraria Cultura.

"O negócio atingiu um ponto tal que os livros tomaram conta da nossa casa", contaria Pedro Herz, filho daquela empreendedora, em "O Livreiro". Em 1969, a livraria que começou como biblioteca migrou para a Avenida Paulista, onde Eva enxergou o futuro. Lá a família instalou uma estante redonda de madeira, um móbile de três lâminas metálicas, que se movimentava em círculos concêntricos, e se abriu aos novos tempos, passando a vender, além de literatura nacional e estrangeira, livros didáticos e material escolar.

"Nenhuma livraria de Nova York ou de Paris venderia uma proporção de livros em língua estrangeira comparável ao que acontece em São Paulo, na Cultura", escreveria, em 2017, o psicanalista e escritor Contardo Calligaris, para quem aquele espaço não era só sua livraria favorita, "mas uma ilusão de que há um mundo só, uma cultura pátria, que fala várias línguas".

Contardo, que morreu em 2021, não viveu para ver aquele mundo implodir. Mas deu tempo de assistir a um capítulo desagradável desta história: na última década, funcionários denunciaram a Livraria Cultura por assédio. Na decisão judicial que decretou sua falência, o juiz chegou a citar a ausência de quitação das dividas trabalhistas, que deveriam ter sido pagas até junho de 2021.

O fim da Livraria Cultura - Zanone Fraissat/Folhapress - Zanone Fraissat/Folhapress
Alma da instituição se perdeu na passagem do comando; na foto, Fábio e Sérgio Herz, CEO da 'nova' Cultura
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

O modelo de megastore

Desde 2018, quando a companhia passou a respirar por aparelhos em meio a um delicado processo de recuperação judicial, a morte era aguardada por clientes, credores e fornecedores que já evitavam fazer negócios ali.

Esse desfecho, por ironia, já estava escrito na noite de gala de 2007. A inauguração parecia consagrar um novo modelo de negócio, mas alguma coisa ficou no caminho: a alma da antiga livraria. Essa alma, segundo quem acompanhou as transformações, se refletia até mesmo no comportamento dos funcionários de longa data, que começaram a ser afastados da nova gestão à medida que o negócio familiar trocava de mãos.

"Nessa época o filho do Pedro, Sérgio Herz, estava praticamente no comando e, lentamente, as coisas foram mudando. Muita gente foi dispensada. A Livraria Cultura era próxima dos leitores, dos escritores, dos funcionários e das pessoas. Isso foi se perdendo. O clima já estava estranho no dia da inauguração da nova loja do Conjunto Nacional. O próprio Pedro estava diferente. Era como se o sucesso tivesse subido à cabeça", conta uma antiga funcionária que pediu anonimato.

O fim da Livraria Cultura - France Presse: AFP/France Presse- AFP - France Presse: AFP/France Presse- AFP
Em uma visita à livraria paulistana, o Nobel português José Saramago chamou-a de 'catedral de livros'
Imagem: France Presse: AFP/France Presse- AFP

Um centro cultural

Até a grande reforma, a Cultura era conhecida por ter na equipe pessoas que gostavam de ler e sabiam falar sobre livros.

"Os vendedores da antiga Cultura orientavam, indicavam leitura, ajudavam. Era tudo muito personalizado", conta a jornalista Lays Sayon Saade, que entre 1992 e 2007 editou o jornal "Cultura News", publicação mensal da companhia que Pedro Herz acompanhava desde as reuniões de pauta até o fechamento, sendo responsável por sugerir temas e intermediar entrevistas com autores consagrados. "O jornal tinha a alma do Pedro", conta Lays.

Fernando Brito, curador da Versátil Home Vídeo, se lembra dos debates promovidos com diretores e artistas, durante os lançamentos de box e DVDs, que foram perdendo espaço com a crise da companhia e o avanço do streaming. Até então, o modelo de venda das distribuidoras estava ancorado nas megastores. Esse mercado precisou se reinventar, ficando ainda mais nichado.

"O custo para manter a loja e toda a estrutura é muito elevado. É mais barato investir em e-commerce, com seus galpões de distribuição, do que bancar os custos de aluguel em shopping."

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Fornecedores correram à loja da Paulista para recuperar seus estoques temendo a lacração do imóvel
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

A chegada da Amazon

A derrocada da Livraria Cultura coincide com a ascensão de gigantes como a Amazon e a expansão desenfreada para competir no mercado online. Sob anonimato, um livreiro de São Paulo diz atribuir parte da derrocada da Livraria Cultura à tentativa frustrada de entrar nessa disputa.

"Quando eles compraram a Estante Virtual, os donos de sebos acharam que seria até bom, porque eles entendiam do negócio. Mas foi um fiasco. Não dá para entender por que fizeram isso. Talvez para competir com a Amazon."

Para Haroldo Ceravolo, editor da Alameda Casa Editorial e ex-presidente da Libre (Liga Brasileira de Editoras), o modelo adotado pela Livraria Cultura não era coerente nem com a tradição do mercado livreiro nem com a ideia de economia de escala.

"A expansão da Cultura criou uma empresa inadministrável. Não concordo que seja reflexo de uma crise da cultura, num sentido mais amplo. Essa ideia procura tratar o livro como se ele não fosse uma mercadoria", afirma. Segundo ele, as inovações tecnológicas na produção e circulação de livros derrubaram seu preço, o que favorece uma crise sistêmica, que se manifestou no varejo, no caso as livrarias Cultura e Saraiva e, agora, parte do negócio das Americanas.

O fim da Livraria Cultura - Planconsult - Planconsult
'O erro principal foi esquecer quem eles eram', diz José Luiz Tahan, da Realejo Livros
Imagem: Planconsult

'Modelo de expansão foi erro'

Segundo José Luiz Tahan, dono da Realejo Livros, de Santos, o que tornou a Livraria Cultura especial foi seu modelo inicial de atuação. "Era uma livraria densa, com grandes livreiros, localizada em um grande ponto", analisa.

Para Tahan, o modelo de megalojas, com muitos metros quadrados e pouco atendimento, numa espécie de "self-service impessoal", é datado. "O Pedro Herz conseguiu construir uma marca muito respeitada, mas a proposta original foi abandonada quando começaram a crescer e se expandir de forma muito rápida. E, em uma livraria, não dá para economizar no humano e investir nos tijolos. O erro principal foi esquecer quem eles eram. O desafio do crescimento é importante para todos, mas tem que crescer mantendo as virtudes. Se não você fica frágil", afirma o livreiro, que está há 30 anos no mercado.

Mercado selvagem

Em 2017, quando lançou "O Livreiro", Pedro Herz contabilizava 17 unidades, 1,5 mil funcionários, 5 milhões de clientes e 9 milhões de produtos. Mas já visualizava um futuro sombrio para o varejo.

Na época, Herz previa que a responsabilidade seria maior a partir daquele ano. A companhia havia acabado de comprar as operações da FNAC no Brasil — "um namoro entre empresas" que terminou com a incorporação de 12 lojas, 600 funcionários e milhões de produtos. "Pedro, em que belo desafio você se meteu, justo num país em crise", brincou ele, em sua autobiografia.

Sua impressão era que o modelo megastore, com livrarias de até 4 mil m², já não funcionava. "As lojas tenderão a ser, cada vez mais, showrooms de produtos", previa. "Vejamos o que está acontecendo com os supermercados. Eles estão encolhendo, virando 'express'", notava. A gigante não ouviu o prenúncio de seu decano.

Quem conviveu com o empresário acredita que isso aconteceu porque ele foi perdendo poder na queda de braço com os filhos, herdeiros do negócio que apostaram no crescimento desenfreado até que os negócios ficaram inviáveis.

E um gigante, quando tomba, quase nunca consegue se levantar.