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'Falaram que iam dar sumiço em mim': trabalhador saiu antes e não foi pago

Quarto onde ficavam os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves (RS) - Ministério Público do Trabalho
Quarto onde ficavam os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves (RS) Imagem: Ministério Público do Trabalho

Luísa Carvalho

Colaboração para o TAB, de Salvador

05/03/2023 11h12

Mais de dez dias após a libertação dos trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS), cidade na região da Serra Gaúcha, cerca de R$ 1,1 milhão em verbas rescisórias já foi depositado aos resgatados. A empresa Fênix Serviços Administrativos diz ter pago os direitos trabalhistas de todos os empregados registrados. Porém, três trabalhadores que afirmam ter trabalhado nas fazendas dizem ainda não ter recebido esse dinheiro e não sabem se serão incluídos na indenização.

Os três homens saíram do Rio Grande do Sul entre 15 e 17 de fevereiro, alguns dias antes da chegada da PRF (Polícia Rodoviária Federal) ao alojamento — e estão no meio de um imbróglio entre o MPT (Ministério Público do Trabalho) da Bahia e a Fênix, terceirizada responsável por oferecer a mão de obra às vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.

O MPT alega, em audiência realizada na última quarta-feira (1º), que a empresa não aceitou incluir os três no pagamento das rescisões. Segundo a procuradora que acompanha o caso no estado, Manuella Gedeon, a terceirizada se recusou a acrescentá-los sob a justificativa de que os empregados não tinham prestado serviço a ela.

'Negociação dinâmica'

Em contato com o TAB, a empresa contestou a versão do MPT e disse que "todos os trabalhadores" receberam o pagamento, ao qual o advogado da Fênix, Rafael Dornelles, se referiu como "indenização" — embora o valor depositado até agora aos trabalhadores seja referente às verbas rescisórias e a proposta de indenizar todos os empregados também tenha sido negada pela empresa em audiência com o Ministério Público. O processo, uma "negociação dinâmica", nas palavras de um representante do MPT, segue com a confrontação dessa alegação da terceirizada perante a Justiça do Trabalho.

Enquanto isso, os três homens, que dizem ter escapado antes da chegada da PRF e não ter recebido nem o pagamento do salário equivalente aos dias trabalhados, sofrem com a indefinição. Eduardo [nome fictício], 29, é um deles. Ele conta que saiu do Rio Grande do Sul com a ajuda financeira da família, numa viagem que custou R$ 1.400.

Com receio de ser encontrado pela empresa, Eduardo — que apresentou à reportagem um contrato de trabalho assinado e carimbado pela Fênix — conta que percorreu um roteiro itinerante de Bento Gonçalves a Salvador com duração de quatro dias e paradas nas cidades de Caxias do Sul, Curitiba, São Paulo, Brasília e Feira de Santana — sempre trocando de ônibus e dormindo em rodoviárias.

Fac-símile do contrato de trabalhador com a Fênix - Reprodução - Reprodução
Contrato de trabalho de Eduardo [nome fictício] com a Fênix: como ele saiu antes, ainda não recebeu
Imagem: Reprodução

'Tiraram minha foto'

O trabalhador diz ter optado por seguir esse trajeto, que descreve como "maluco", por medo das ameaças que sofreu dos guardas da fazenda quando disse que denunciaria a empresa por conta das condições de trabalho. "Tiraram foto minha e falaram que iam dar sumiço em mim. Foi aí que saí da cidade logo, fiquei com medo de que eles me encontrassem", conta Eduardo.

Além de ter chegado em casa sem o salário de R$ 2 mil por mês estabelecido pela empresa, a viagem deixou dívidas para a sua família. "Estou devendo no cartão, devendo o aluguel, não tenho nada dentro de casa pra comer. Fico agoniado, com a mão na cabeça pensando nessa situação", diz.

Antes da saída do primeiro grupo, Eduardo conta que, ao longo do mês de fevereiro, seis outros trabalhadores fugiram da fazenda em duplas ou sozinhos. "A gente saía para trabalhar, quando voltava, alguém falava: 'Fulano e sicrano foram embora, vazaram daqui'. Era assim que acontecia", afirma. Os primeiros a partir não teriam participado da denúncia, segundo o baiano.

Ele diz que foi só depois da primeira quinzena de fevereiro que o plano de fuga conjunta começou se consolidar. Eduardo abandonou o local no dia 17 e, junto aos dois que tinham partido dias antes, deu as coordenadas aos outros trabalhadores para que conseguissem sair da fazenda e ajudou a informar aos que ficaram sobre a ida da PRF ao alojamento.

Número deve crescer

Na tarde da última quinta-feira (2), mais 14 trabalhadores de Salvador que também teriam fugido do Rio Grande do Sul antes da operação de resgate foram até o MPT pedindo sua inclusão nas verbas rescisórias e no pagamento da indenização.

Eles foram orientados a realizar um registro digital no site do ministério para análise individual de seus casos. Outro baiano também foi localizado pelo advogado Gustavo Azevedo, representante de Eduardo e dos outros dois primeiros fugitivos. O homem teria escapado de uma das fazendas antes da operação e, não conseguindo voltar para Salvador, tentou esconderijo com uma família gaúcha. Segundo Azevedo, ele já estava há mais de um ano em situação análoga à escravidão.

O advogado avalia que o número de pessoas submetidas a más condições de trabalho e tortura nas vinícolas aumentará com o passar dos dias. "Os alojamentos comportavam entre 300 e 400 pessoas. Eram espaços para muito mais gente. A tendência é de que sejam encontradas outras pessoas que, inclusive, estariam há mais tempo nas fazendas e foram fugindo, tentando se esconder pela região", diz.