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Festa do golpe de 64 no Rio tem militares de bengala e camisa da seleção

Entrada dos fundos do Clube Militar no Rio - Camille Lichotti/UOL
Entrada dos fundos do Clube Militar no Rio Imagem: Camille Lichotti/UOL

Do TAB, no Rio

31/03/2023 15h01Atualizada em 31/03/2023 20h34

Pouco antes do meio-dia desta sexta-feira (31), houve uma espécie de troca de turno no Clube Militar do Rio. Homens mais jovens de bermuda e raquete de tênis nas mãos deixavam o lugar, enquanto entravam idosos de óculos escuros e roupa social. Alguns desfilaram com calças Pierre Cardin, sapato de couro de cobra e blazer preto (apesar do calor que fazia no Rio). "Todos esses que você vê chegando de terno estão indo pro almoço", disse um dos funcionários do clube. Trata-se do almoço em comemoração ao golpe de 64, que instaurou uma ditadura militar no Brasil.

O Clube Militar organizou o evento "com a finalidade de comemorar o 59º aniversário do movimento democrático de 1964", ignorando a orientação do Ministério da Defesa de não celebrar ou fazer menção à data. No início de março, o ministro José Múcio Monteiro avisou aos comandantes das Forças Armadas que não divulgaria ordem do dia ou nota oficial sobre a ditadura no aniversário do golpe — diferentemente do que aconteceu nos quatro anos anteriores, durante o governo Bolsonaro. O preço da entrada, já incluindo comes e bebes, foi de R$ 90 para sócios e convidados.

De bigode branco e grosso, um oficial da reserva da Aeronáutica que não quis se identificar estacionou o carro na porta do clube. Com dificuldade para saltar do veículo, quase tropeçou num canteiro em direção à porta. Ele é associado à instituição há mais de 50 anos e sempre participa dos eventos do clube para encontrar velhos amigos e "fazer um social".

Questionado pela reportagem, diz que não se incomoda de participar de uma "celebração" do 31 de março. "Na verdade não foi ditadura, né, isso é o nome que deram", diz ele, rindo. É um aperitivo do tipo de discurso que se pode ouvir à beira da piscina do clube.

Dentro do prédio, o clima era de festa. Ao passar pela catraca, um homem gritou: "Vamos comemorar o 31!". Um idoso que usava uma blusa da seleção brasileira e passava ao seu lado respondeu: "É isso aí!".

O almoço foi realizado no ginásio com capacidade para 300 pessoas, entre militares da reserva, da ativa e convidados. Antes de liberar o buffet principal e deixar os convidados se servirem numa ampla mesa, o presidente da associação leu a nota assinada pelos presidentes do Clube Militar, do Clube de Aeronáutica e do Clube Naval. O texto falava em "contrarrevolução de 31 de Março" e afirmava que os clubes e as Forças Armadas se vinculam para que o dia "permaneça vivo na História". O evento começou às 11h30 e não tinha hora para acabar.

O clima era de camaradagem. Segundo militares ouvidos pelo TAB, trata-se de um evento "para rever os amigos, contar histórias e confraternizar". O clube tem uma agenda social agitada e promove jantares, shows reservados, almoços em datas comemorativas e "noites dançantes" para os idosos. O coronel Ivan Cosme, diretor de comunicação social, afirmou que o almoço de 31 de março é uma tradição "que não será rompida". "A gente comemora como algo que preservou a democracia e foi muito importante para nos livrar de uma revolução comunista. Talvez você não estivesse aqui agora me fazendo perguntas se o 31 de março não tivesse acontecido", disse.

O comandante do Exército, general Tomás Paiva, afirmou que a instituição punirá oficiais que comemorarem o aniversário do golpe militar ou participarem de eventos organizados por militares da reserva.

O diretor de comunicação social do Clube Militar confirmou ao TAB que havia militares da ativa presentes no almoço comemorativo — mas que não era possível checar as credenciais de todos. O coronel deu de ombros para o aviso do comandante do Exército e a orientação do Ministério da Defesa. "O clube é uma entidade civil, nós não devemos nenhuma satisfação ao ministério", disse ele. "Para nós isso [a orientação] é letra morta, no sentido de que não temos que obedecer o Ministério da Defesa."

Fachada da sede esportiva do Clube Militar, no Rio - Camille Lichotti/UOL - Camille Lichotti/UOL
Imagem: Camille Lichotti/UOL

'Nascemos para o movimento político'

Na fachada do espaço não havia nenhuma indicação do teor da comemoração, mas a segurança reforçada indicava que as atividades de sexta eram especiais e chamavam a atenção de quem passava na calçada. Os quatro seguranças na porta do evento faziam selfies e gravavam vídeos. A quem passava na rua perguntando, os seguranças respondiam que ali acontecia "um almoço", sem entrar em detalhes.

A sede esportiva do Clube Militar fica incrustada em um dos endereços mais caros do Rio, entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Jardim Botânico. Cercada pelo verde exuberante do Parque Nacional da Tijuca, parece uma pousada praiana que cheira a protetor solar e cloro. Hoje, contudo, a entrada mais parecia uma convenção de jogadores de bocha. De dentro dos táxis saíam homens de cabelo branco, alguns com bengala, andador ou cadeira de rodas. Os que estavam acompanhados vinham de braços dados a madames com óculos enormes e bolsas pequenas. A maioria não quis dar entrevista.

O espaço tem uma piscina social, uma piscina semiolímpica aquecida e duas piscinas infantis, além de sauna, quatro quadras de tênis, uma quadra de basquete e uma de futsal e salões para eventos.

Para se associarem ao clube, militares da ativa e da reserva pagam uma mensalidade de R$ 162. Parentes diretos dos oficiais pagam R$ 198. Civis não aparentados só podem virar sócios com a indicação de oficiais militares — nesse caso, ainda precisam desembolsar R$ 2.000 e pagar uma mensalidade de R$ 398.

Nas redes sociais, o clube se descreve como instituição "comprometida com o lado social, cultural, de lazer e engajada politicamente". "Nós nascemos dentro do viés político, nascemos para o movimento político", afirma o coronel Cosme.

General Eduardo José Barbosa - Reprodução - Reprodução
General Eduardo José Barbosa
Imagem: Reprodução

A instituição radicalizou o discurso nos últimos anos. Em fevereiro de 2021, emitiu uma nota assinada pelo general da reserva Eduardo José Barbosa, então presidente da instituição, posicionando-se contra a prisão do deputado Daniel Silveira e afirmando que "uma grande parcela da população tem saudades do Regime Militar instaurado a partir de 1964".

Mas é na Revista do Clube Militar, o veículo de comunicação oficial da associação, que a radicalização política se escancara. Na última edição trimestral de 2022, diversos artigos de teor golpista assinados por militares foram publicados. Um deles, fazendo coro aos movimentos bolsonaristas da época, dizia que "só resta à sociedade ir às portas dos quartéis, últimos canteiros de onde pode brotar sua esperança, porque a outra [opção] leva a bem conhecido inferno na terra".

Outro artigo colocava em dúvida o sistema eleitoral, dizendo que "a Nação não aceita ser governada por Lula" e se referia aos acampamentos em frente aos quartéis como "Primavera Brasileira".

O Centro de Comunicação Social do Exército, em nota enviada ao TAB após a publicação da reportagem, informa que não foi identificada a participação de militares na ativa no almoço realizado no Clube Militar.