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Padre que difamou médico por aborto legal é condenado a pagar R$ 10 mil

"Dr. Olímpio mata criancinhas", escreveu o padre Luiz Carlos Lodi, presidente da Associação Pró-Vida de Anápolis (GO) - Elaine Menke/Câmara dos Deputados
'Dr. Olímpio mata criancinhas', escreveu o padre Luiz Carlos Lodi, presidente da Associação Pró-Vida de Anápolis (GO) Imagem: Elaine Menke/Câmara dos Deputados

Théo Mariano

Colaboração para o TAB, de Anápolis (GO)

05/04/2023 04h01

No fim de março, o silêncio imperava em igrejas de Anápolis, a 60 km de Goiânia. Num dia de muito calor e céu azul, os corredores estavam especialmente quietos na Diocese de Anápolis e na Igreja Nossa Senhora da Abadia. Tudo "normal", dizia-se. "A relação com o padre segue bem, normalmente", citou uma secretária da diocese.

O padre é Luiz Carlos Lodi, condenado a pagar R$ 10 mil de indenização ao médico Olímpio Moraes Filho, obstetra a quem chamara de "assassino" por gerenciar um centro no Recife onde foi feito um aborto legal em uma garota de dez anos estuprada pelo tio no interior do Espírito Santo.

"Meu silêncio é proposital", disse o padre ao TAB, por telefone, na sexta-feira (31). Presidente da Associação Pró-Vida de Anápolis, Lodi preferiu não comentar o caso, mas informou que vai recorrer da sentença. "Vou deixar tudo nas mãos de Deus, e que seja como Ele quiser."

As palavras que lhe custaram o processo continuam no ar até esta terça-feira (4), na página da Associação Pró-Vida no Facebook. No post, datado de 15 de setembro de 2020, o autor tenta traçar um paralelo entre a criança estuprada e o feto, referido como "segunda menina". "A segunda menina nem sequer tinha um nome [...]. Tinha 22 semanas e quatro dias e estava no útero da primeira menina, quando foi cruelmente assassinada", postou. "Não é esta a primeira vez que o dr. Olímpio mata criancinhas."

Igreja Nossa Senhora da Abadia, em Anápolis (GO) - Théo Mariano/UOL - Théo Mariano/UOL
Igreja Nossa Senhora da Abadia, em Anápolis (GO)
Imagem: Théo Mariano/UOL

"Deixa isso para a Justiça", diz Moraes Filho, sobre o post ainda no ar.

Professor da UPE (Universidade de Pernambuco), o médico comandava o Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), no Recife, em 2020. Conta que não atua diretamente em casos de aborto há mais de uma década - coordenava o centro, mas não foi o responsável pelo procedimento da garota capixaba. "Era uma menina simples, criada pela avó", lembra.

Na época, o caso repercutiu no país inteiro, pois lideranças políticas e religiosas conservadoras tentaram impedir o procedimento.

"Não entendo como essas pessoas se dizem pró-vida, mas querem que uma menina corra risco de vida para dar continuidade a uma gravidez fruto de estupro", critica Moraes Filho, que atualmente está em El Paso, no Texas (EUA), onde participa de um projeto. "Mais importante que o valor monetário é o efeito político e educador", pondera o médico, que pediu R$ 40 mil de indenização a Lodi, e obteve uma sentença favorável de R$ 10 mil.

8.mai.2018 - O obstetra Olímpio Moraes - Teresa Maia/UOL - Teresa Maia/UOL
O médico Olímpio Moraes Filho defende 'discutir o aborto de maneira sensata'
Imagem: Teresa Maia/UOL

Histórico

Não é a primeira vez que Lodi se envolve num processo judicial devido à militância no movimento antiaborto.

Em 2005, ele pressionou para impedir o aborto legal autorizado a uma gestante de Morrinhos (GO) que teve diagnóstico de síndrome de body stalk, que provoca diversos defeitos ao desenvolvimento fetal e impede a vida fora do útero. A jovem já estava tomando medicamentos para a retirada do feto, mas o padre conseguiu um habeas corpus para impedir a continuidade do aborto.

Ela deu à luz, e o bebê morreu duas horas depois de nascer. Em 2016, Lodi foi condenado a pagar uma indenização de R$ 60 mil para ela (R$ 400 mil, se reajustados com a inflação). Em 2020, esgotaram-se os pedidos de recurso — o processo está sob segredo de Justiça e, segundo o TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás), não é possível conferir se o padre já quitou o pagamento.

"Digo para meus alunos: tenho o sonho de viver em um país em que a gravidez seja motivo de alegria para a mulher, e não um motivo de punição", diz Moraes Filho. "Vivemos em um Estado laico, onde as pessoas têm o direito de seguir a religião que bem entenderem, mas não podemos transformar uma religião em Estado. Ao negar a ciência, causamos a morte de muitas mulheres", afirma. "Perdemos vidas ao não discutir o aborto de maneira sensata."

É dever do Estado, acrescenta a antropóloga Débora Diniz, professora da UnB (Universidade de Brasília), garantir condições de saúde. "O espaço das religiões tem que ser garantido, mas não num espaço de controle, vigilância e intromissão. As mulheres, meninas e pessoas que podem engravidar têm que ter proteção de suas necessidades de saúde. Aborto é uma questão de necessidade de saúde", diz.