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Professoras atacadas em escola de SP revelam temor de voltar à sala de aula

Marie Declercq e Luis Adorno

Do TAB, em São Paulo

08/04/2023 04h00

Uma semana após ser atacada e ferida por um adolescente de 13 anos, Ana Célia da Rosa, 58, carrega na pele as marcas da violência sofrida. Ao todo, a professora de história tomou 64 pontos, todos decorrentes das 17 facadas que a atingiram nos braços, nas mãos, na cabeça e na perna. Os golpes foram desferidos por um aluno do 9º ano da escola estadual Thomázia Montoro, localizada na Vila Sônia, em São Paulo.

A professora foi atacada no dia 27 de março, enquanto ajudava a colega Elisabeth Tenreiro, 71, esfaqueada nas costas pelo agressor. Ana Célia pensou que Elisabeth havia passado mal e desmaiado em sala de aula, mas logo viu sangue na colega e gritou por ajuda. Quem apareceu foi o agressor.

"Não vi que ele estava de máscara, não vi nada, só vi a faca que ele levantou e foi direto na minha cabeça. Só lembro que teve uma hora que eu gritei 'chega' pra ele", contou ela ao TAB, ainda se recuperando dos ferimentos.

Elisabeth Tenreiro, professora de ciências, não resistiu. Outra professora da escola, Rita de Cássia Reis, 64, também foi alvo do aluno. Levou 30 pontos e não se vê mais voltando para a sala de aula depois do que aconteceu. Logo após ser liberada pelo médico, a docente viajou para a casa da família no interior de Minas Gerais. "Não consigo ficar sozinha."

Ana e Rita, cada uma lidando com os vestígios de violência deixados pelo agressor à sua maneira, demonstram o trauma com que a comunidade escolar vítima de crimes dessa natureza precisa lidar depois do ataque. Nesse caso específico, diversos elementos mostram que foi uma tragédia anunciada.

Policiais em frente à escola Thomázia Montoro na Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo - ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO - ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Policiais em frente à escola Thomázia Montoro na Vila Sônia, na zona oeste de SP, na manhã de 27 de março
Imagem: ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Passado e presente conturbados

Segundo a polícia, o jovem de 13 anos disse, em depoimento, que estava planejando um ataque há dois anos. O adolescente relatou ter problemas com o pai, que já o teria agredido. No entanto, a principal motivação para o crime foi o suposto bullying praticado pelos colegas de escola.

Pouco menos de um mês antes do crime, ele foi transferido para a Thomázia Montoro, vindo de outra escola estadual, em Taboão da Serra, depois de ameaçar de morte um colega pelo WhatsApp e tentar extorqui-lo em seguida.

A ameaça foi reportada à coordenação e foi registrado um B.O. contra o adolescente. No entanto, a transferência não atrasou as intenções do jovem. Na semana anterior ao ataque, ele travou uma discussão com um colega. Foi Elisabeth quem separou os dois.

A mãe do agressor já tinha encontrado no celular do filho conversas em redes sociais exaltando os autores do massacre de Suzano (SP), em 2019, e pretendia levá-lo a um psicólogo na semana do ataque. A consulta nunca aconteceu.

Subcomunidade virtual celebrou crime

Nas redes sociais, o adolescente publicou diversas vezes que pretendia cometer um ataque contra os colegas da escola. Na noite anterior, fez uma pergunta na sua conta pessoal do Twitter: "Vcs acham que eu faço amanhã e vê o que vai acontecer sem um armamento decente ou não?". Um usuário anônimo, dedicado a publicar vídeos e fotos homenageando os autores de crimes como os massacres de Suzano e de Aracruz (ES), perguntou: "Como vc vai fazer isso?".

Horas depois, o jovem publicou: "Irá acontecer hoje esperei por esse momento a vida inteira (...) tomara que consiga alguma kill". Por volta das 7h20, o adolescente atravessou os portões da escola portando uma tesoura e uma faca.

O rosto estava parcialmente coberto por uma máscara de caveira, conhecida como "siege mask", que se popularizou depois de ser usada por Guilherme Taucci, um dos autores do massacre de Suzano. Taucci se tornou um "ícone" da subcomunidade que o adolescente frequentava nas redes sociais, centrada em homenagear autores de ataques em escolas.

O próprio adolescente usava o sobrenome "taucci" de nome de usuário no Twitter. Foi para esses membros que o crime foi anunciado horas antes. A subcomunidade está ativa principalmente no Twitter, TikTok e Discord. Para encontrá-la é preciso saber hashtags e termos específicos para interagir com centenas de perfis alimentados principalmente por jovens e adolescentes. Nela, ninguém revela o nome. O grupo segue prestando homenagens a atentados violentos contra comunidades escolares.

Menos de duas horas depois que o ataque foi noticiado, o usuário que estava interagindo com o adolescente publicou um vídeo homenageando o crime. Antes de a imprensa noticiar detalhes do crime, o perfil já compartilhava nome e fotos do autor do atentado.

'Espero que ele se encontre'

Conversando sobre os motivos que poderiam ter levado o adolescente a matar uma professora e ferir mais quatro pessoas, a professora Ana Célia da Rosa diz não conseguir ter raiva do agressor.

Mesmo quase perdendo a vida para salvar a colega, Rosa mantém a afirmação que fez antes de prestar depoimento na delegacia no dia 28 de março. "Continuo sentindo dó dele. (...) Ele é muito jovem, só tem 13 anos. Espero do fundo do meu coração que ele se reencontre", diz. "Ele poderia ter aparecido de outro jeito. Ele poderia ter aparecido fazendo uma pintura bonita, um quadro, escrevendo um livro, mas ele achou mais fácil aparecer assim."

De vez em quando, passando os dedos pelos pontos pretos no braço, Rosa lembra da colega Beth com um sorriso triste no rosto, sabendo da falta que a colega fará para a educação.

"A gente tinha um pouquinho tempo de convivência, mas ela vai deixar um vazio muito grande. A Beth tinha tantas expectativas de transformar um aluno em pesquisador, era o sonho dela. Se ela conseguisse salvar um, ela tava salvando já uma vida", conta.

Depois de falar da colega, Rosa mantém o sorriso para falar do que pretende fazer quando se curar dos ferimentos. "Quero voltar para a sala de aula."

A professora Ana Célia da Rosa, vítima do agressor da escola Thomázia Montoro, na Vila Sônia: a camiseta que veste homenageia as vítimas de Suzano - MOV/UOL - MOV/UOL
Imagem: MOV/UOL

Questão de tempo

A violência orquestrada pelo adolescente representa um tipo de crime que cresceu expressivamente nos últimos 20 anos: atos de violência extrema contra escolas, cometidas por alunos ou ex-alunos por vingança ou ligação com ideologias extremistas.

De acordo com um estudo da Faculdade de Educação e Coordenadora do Grupo "Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública" do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), 23 ataques foram registrados no país nas duas últimas décadas — mas 40% deles (nove atentados) ocorreram nos últimos nove meses.

A frequência de crimes do tipo acendeu um alerta entre pesquisadores e profissionais da área de educação. Em dezembro de 2022, um grupo de especialistas entregou um relatório à equipe de transição do governo Lula responsável pela área da educação, alertando sobre a adesão de jovens a ideologias extremistas.

Mesmo com o aumento de atentados a escolas no Brasil, um tipo de violência raro no país, o coordenador do relatório disse ao TAB em fevereiro que não houve interesse especial por parte do governo federal em criar estratégias para combater esse tipo de violência. Para especialistas no assunto, é uma questão de tempo para que outro ataque parecido aconteça no país.