Topo

Mesmo com lei, bares seguem sem protocolo sobre violência de gênero em SP

Cartaz em bar de São Paulo - Luciana Bugni/UOL
Cartaz em bar de São Paulo Imagem: Luciana Bugni/UOL

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

24/04/2023 04h00

Beatriz*, 30, estava com sua irmã, Claudia*, 26, em uma casa noturna da Vila Olímpia, em 2012, em São Paulo. Elas voltariam para casa juntas, de madrugada, mas logo no começo da noite, Claudia percebeu meio comprimido em sua língua enquanto tomava caipirinha — o resto já estava dissolvido no drinque. As duas foram contar para o segurança, que riu. "Ele debochou como se ela estivesse bêbada. Minha irmã já estava cambaleando e procuramos a enfermaria. Sabíamos que ela havia sido dopada, mas não encontramos ajuda", ela lembra.

Um bombeiro na casa ajudou quando Claudia desmaiou. Foi ele quem colocou a garota no carro enquanto a irmã pagava a conta. A casa noturna não fez nada a respeito da situação e nem se sensibilizou com as moças mostrando o comprimido. "Ela dormiu até às 17h do dia seguinte. Imagina o que aconteceria com o comprimido inteiro", conta Beatriz.

O caso, ocorrido há mais de 10 anos, é apenas uma das formas de violência contra mulheres em casas noturnas e bares. Situações menores, como abordagens masculinas incômodas e insistentes, não raro evoluem para apalpadelas e beijos forçados. Ou evoluíam, garantem os entrevistados pela reportagem de TAB em casas noturnas da Vila Olímpia, bairro comercial repleto de bares e boates que recebem o público desde o happy hour até 3h da manhã.

Em fevereiro, foi sancionada uma lei estadual que estabelece que os funcionários de boates devem ser treinados para identificar e inibir condutas de assédio sexual e estupro contra mulheres nesses ambientes. A medida dava 60 dias para gestores e responsáveis se adaptarem, prazo que terminou na terça-feira (18).

Capacitação anual e cartazes que avisem os frequentadores a quem devem procurar, em caso de perigo ou inconveniente, estão entre as diretrizes aprovadas pela Alesp. A ideia é que todos estejam aptos para auxiliar mulheres em situação de risco.

A própria Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) tem investido em palestras para empresários e suas equipes. Percival Maricato, diretor da entidade e advogado especialista foi enfático: "É preciso que os estabelecimentos entendam que clientes que praticam importunação e assédio não são bem-vindos. Os empresários não podem ficar focados apenas no andamento do negócio, mas entender como a clientela está - não só em casos de assédio".

Entre as orientações, está o garçom notar se a paquera é ok ou se virou importunação. Para isso, é fundamental ouvir a cliente em separado. "A mudança de mentalidade é complexa. É preciso ouvir a pessoa que se diz vítima, entender se ela quer chamar a polícia, ou se quer que chamemos um táxi para que ela vá embora em segurança", prossegue.

Grande parte das mulheres, informam os funcionários das casas noturnas, prefere não acionar a PM - entretanto, em casos que configuram estupro, a presença de autoridades policiais é mandatória. Nos casos considerados apenas importunação, o agressor é convidado a se retirar e não retornar.

Casa noturna - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Diversão da casa

Entretanto, nenhum dos garçons e seguranças entrevistados pela reportagem do TAB na Vila Olímpia havia recebido treinamento. Alguns deles desconheciam a lei, mesmo 60 dias depois da promulgação.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a polícia continuará agindo como sempre: em caso de denúncia de violência, deverá mandar a viatura para o local. Não é papel do órgão, entretanto, checar se os bares estão cumprindo treinamentos ou fiscalizando cartazes.

"A intenção da lei é proteger as mulheres e cabe à Polícia Militar fazer o que sempre lhe coube. Se a mulher dá um sinal que demonstre situação desconfortável, o bar tem que estar capacitado a entender. Quando a polícia é acionada nessa situação, então intervém", conta o tenente Wesley Xavier, por telefone.

O problema é que a violência contra a mulher é invisível, afirma Raquel Gallinati, diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil. Ela deu palestras na Abrasel e provoca: "Mulheres são tratadas como parte do entretenimento nessas casas. Quando você coloca 'entrada gratuita', na intenção de encher o local de mulheres, e cobra mais barato na bebida delas, está passando uma mensagem subliminar de que elas fazem parte da diversão masculina", diz.

"É fundamental que os bares adotem protocolos fixos para que a mulher amedrontada saiba a quem recorrer. A vítima precisa estar segura de que, enquanto está naquele recinto, está protegida e aquele estabelecimento não é permissivo, silente ou inerte", afirma ela, que lembra do caso da boate de Barcelona que auxiliou a mulher que acusa Daniel Alves de estupro a recolher provas, "por mais repugnantes que possam parecer".

Sem treinamento, mas atentos

Às quintas-feiras, o Santa Julia, na Vila Olímpia, cobra R$ 20 de couvert, tanto de mulheres quanto de homens. Mas, aos sábados, o valor muda e mulher paga menos. A reportagem pergunta qual o protocolo para aquelas que se sintam assediadas ou importunadas e a segurança da porta garante que, se algo acontecer, é só chamar um funcionário que eles retiram a pessoa inconveniente.

"Pode entrar tranquila, fazemos isso desde antes da lei", diz ela, espontaneamente. Na casa, há dois andares onde acontecem shows de sertanejo, em dois palcos. As mesas são afastadas e as pessoas dançam no espaço.

"É muito raro ter alguma reclamação. Mas é importante a mulher dar um sinal, um aceno. Não dá para saber quando a mulher está gostando ou não e precisamos ter algo concreto para tomar atitudes ou até chamar a polícia. Mas aqui, nos shows de sertanejo, é raríssimo acontecer algo assim. Ou as mulheres não avisam, ou não acontece mesmo. Ficamos atentos o tempo todo", diz a segurança. Segundo ela, a lei é uma garantia a mais "para nós, mulheres". Pergunto se a casa tem cartazes avisando que a mulher que se sente em risco pode contar com eles, já que não vejo nenhum, e ela diz que não — sugere que eu deixe uma nota na caixa de sugestões, porque é uma excelente ideia.

No Eu Tu Eles, outro bar em que as mesas são afastadas e se forma uma pista próxima ao palco, os garçons também avisam que não acontece muito esse tipo de situação.

"Uma vez, uma mulher chamou um garçom e o segurança foi falar com ele. Se for sério, bota [o homem] para fora. Mas, para saber que é sério, a mulher precisa avisar." No caminho para o banheiro do bar, há um cartaz que avisa que a mulher não está sozinha e sugere o número 180. Posicionado em um corredor, o aviso não está muito visível.

O mesmo cartaz está colado no espelho do banheiro feminino do Tatu Bola, em lugar de destaque. O salão do bar, onde ficam mesas e palco, não tem cartaz, mas um dos garçons me diz que, em dias em que a pista está lotada, ele é chamado por meninas pedindo ajuda. "Sempre me apresento pelo nome, então elas sabem que podem contar comigo."

Ali, as moças fingem que vão pedir algo e pedem "tira esse cara daqui por favor". "Eu digo que ele está incomodando a moça. Às vezes me xingam, enfiam o dedo na minha cara. Aí eu chamo segurança para tirar da pista ou da casa. Precisa respeitar as moças", ele diz.

Ele conta que uma das táticas é oferecer um bloco de notas e uma caneta — e simula a cena comigo. "Em vez de escrever a música, você escreve SOS", ensina.

E em situações em que mulheres são dopadas? "Nunca aconteceu aqui, mas ficamos de olho não só dentro do bar como na saída, quando as clientes estão na calçada. Vamos cuidar de qualquer coisa que aconteça."

A questão da importunação sexual parece longe de ser resolvida, mas, se fosse hoje, Claudia talvez tivesse mais apoio do que há 10 anos.

TAB tentou contato contato com os bares citados para saber quando e se serão colocados cartazes pela casa, mas não ovteve retorno até a publicação desta reportagem. O texto será editado, caso houver resposta.