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'Me sinto vingada': atriz indígena de 'O Guarani' exalta ópera decolonial

Indígenas do Coro Guarani do Jaraguá protestam na estreia da Ópera "O Guarani", de Carlos Gomes, com direção de Ailton Krenak e Cibele Forjaz - Mônica Bento/Folhapress
Indígenas do Coro Guarani do Jaraguá protestam na estreia da Ópera 'O Guarani', de Carlos Gomes, com direção de Ailton Krenak e Cibele Forjaz
Imagem: Mônica Bento/Folhapress

Do TAB, em São Paulo

20/05/2023 04h01

"Para mim, é uma vingança", disse a atriz, artista visual e poeta Zahy Tentehar, dias antes da estreia da ópera "O Guarani", em uma conversa aberta ao público sobre o processo de criação da montagem, no Theatro Municipal de São Paulo.

O espetáculo ganhou uma nova versão na capital paulista neste mês de maio, 23 anos depois da última encenação ali. A curtíssima — e concorrida — temporada vai até 20 de maio e está com todos os ingressos esgotados.

Composta em 1870 por Carlos Gomes, a ópera baseada no romance homônimo de José de Alencar se passa no Brasil colônia. Ela conta a história de amor entre Cecília, jovem filha de um fidalgo português, e Peri, um indigena guarani — casal que enfrenta diversos obstáculos, como a oposição do pai da moça, Dom Antônio, e a rivalidade com o vilão Loredano. É uma trama com as tragédias, os confrontos e as ilusões que convinham ao romantismo nacionalista.

Desta vez, no entanto, ela ganhou novos contornos e, por isso mesmo, tornou-se uma das estreias mais esperadas da cena lírica paulistana. Se por um lado mantiveram-se intactos a música e o libreto (em italiano), por outro rompeu-se a encenação original pela perspectiva do escritor e pensador indígena Ailton Krenak e da diretora Cibele Forjaz. Pela primeira vez, há indígenas em cena, em papéis de destaque. No caso do par romântico, as personagens se dividem em dois intérpretes: os cantores líricos e os atores, criando-se o que a direção chama de "duplo".

'Ocupar esses lugares'

A guajajara Zahy Tentehar interpreta o espírito da terra, uma das duas faces de Cecília, cuja voz é da soprano Nadine Koutcher. Além da atriz maranhense, estão no elenco o ator guarani David Vera Popygua Ju, no papel de Peri, e a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyer'y Kuery.

"Tenho uma sensação de alívio. De certa maneira, me sinto vingada. E, como Denilson me falou, 'vingar' também tem o sentido de renascer. Quando eu digo 'vingar' é pensar de um lado bom da coisa", explica Zahy, em entrevista ao TAB, após a primeira semana de apresentação.

"Il Guarany", como é o título original, mistura ópera e balé cantado em italiano. Ela teve sua primeira apresentação em Milão e só ganhou os palcos no Brasil em 1870, no Rio de Janeiro. Até esta mais recente encenação, Peri nunca havia sido interpretado por um indígena, e o balé sempre fora composto por artistas brancos fantasiados. O próprio texto tem passagens hoje consideradas racistas, que exaltam o colonialismo.

Estar em cena recriando uma nova estética para a obra — em um evidente questionamento decolonial — é, para Zahy, uma realização. Ainda mais quando isso acontece no palco mais importante da cidade. "É poder falar às pessoas que estamos ali, que podemos e precisamos ocupar esses lugares", diz. "Embora a gente não tenha essa imagem pomposa, que muitas vezes nos é exigida, a gente tem muita capacidade de criar e cocriar."

Ao ser convidada por Cibele Forjaz para integrar a equipe da ópera, Zahy impôs uma única condição: "Que os indígenas não fossem figurantes", lembra-se. "Eu, como indígena e artista, passei por diversos momentos da minha carreira em que não tinha um papel de importância, o que eu falava não interessava às pessoas. A primeira coisa que pensei foi que a gente corria risco de os indígenas virarem figuração."

O que acontece é o oposto disso. No palco, os personagens duplos e os músicos guarani crescem a cada ato, numa presença constante que culmina em uma oração cantada pela própria atriz. "Acho que a gente conseguiu, graças à [diretora] Cibele, que foi muito corajosa, e também aos nossos encantados, nossas forças, nossos deuses."

O ator David Vera Popygua Ju, o Peri, e a atriz Zahy Tenthehar, a Ceci - Adriano Vizoni/Folhapress - Adriano Vizoni/Folhapress
O ator David Vera Popygua Ju, o Peri, e a atriz Zahy Tenthehar, a Ceci
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

'Carne e osso'

Segundo Ailton Krenak, os duplos foram "recursos que tivemos que acionar para poder contar essa história da perspectiva ameríndia". "A gente pode imaginar que está fazendo uma coisa nova, mas na verdade estamos incidindo um olhar antigo sobre uma história", provoca.

Para o escritor e ambientalista, os duplos de Peri e Ceci dão "carne e osso" para os personagens "aterrissarem". "O povo indígena vive na terra e não num lugar fantasiado."

Uma das mais atuantes diretoras do teatro brasileiro contemporâneo, é a primeira vez que Cibele Forjaz assina a direção de uma ópera. O convite para que assumisse a empreitada partiu justamente da relação que, há 16 anos, ela estabeleceu numa pesquisa sobre os ameríndios.

"Fazer uma ópera bem-feita era importante e, ao mesmo tempo, criar esses planos visuais múltiplos da presença tanto do povo guarani quanto das culturas que fizeram esse momento histórico. A presença desse contraste só fortalece a beleza da ópera", acredita Cibele.

A leitura decolonial para a ópera de Carlos Gomes não a desconstrói, no entanto, garante a diretora. Ela cria novos planos — tanto pela presença guarani, quanto pela riqueza visual expressa nos desenhos do artista Denilson Baniwa, em projeções que constroem a cenografia.

Atores acompanhados do Coral Guarani - Adriano Vizoni/Folhapress - Adriano Vizoni/Folhapress
Atores acompanhados do Coral Guarani
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

Demarcação de território

Uma grande faixa cruzava parte do proscênio do Municipal no fim da apresentação de estreia de "O Guarani", dia 12. "Demarquem Yvy Rupa", cobravam os artistas indígenas, referindo-se à demarcação de ao menos 12 terras situadas na Mata Atlântica.

A plateia — em sua maioria branca — levantou-se, eufórica para aplaudir. Dias depois, a crítica mais progressista reconhecia o espetáculo como uma versão que salva a obra dela mesma. Para as de viés conservador, porém, trata-se de uma abordagem didática do original.

Quatro dias depois, em videochamada, Ailton Krenak não quis responder sobre possíveis caminhos de releitura para outras obras, como foi feito com "O Guarani". "Não vou dar receita de bolo", disse. E defendeu a pertinência da montagem: "Eu sou Ailton Krenak, indígena. Não preciso de aprovação de ninguém para fazer uma obra decolonial."