'Estou renascendo': CNJ faz mutirão para dar documento a quem não tem
São 7 horas da manhã de uma segunda-feira e as portas de madeira se abrem no Núcleo de Convivência para Adultos em Situação de Rua, no centro de São Paulo. Diante da palavra "democracia" colada na parede — com cada letra estampada em tampas de marmitex —, uma fila logo se forma, entre o vai e vem de mesas e computadores.
Conhecido como Chá do Padre, o local é centro das ações sociais dos frades franciscanos e distribui diariamente comida e doações para pessoas em situação vulnerável. Na semana passada, porém, o interesse do contingente era outro: a possibilidade de conseguir documentos e registros civis — muitos pela primeira vez.
Eurico Pereira, 62, era o primeiro da fila e nem precisou madrugar. "Estou ficando por aqui desde abril, quando começou a esfriar", conta. O saguão do espaço, àquela altura tomado por computadores e funcionários dos cartórios, à noite tem servido de abrigo durante o período de baixas temperaturas na cidade.
Sentado na cadeira de rodas, Eurico queria aproveitar a chance de conseguir a segunda via de todos seus documentos: da Certidão de Nascimento ao Título de Eleitor. Ele diz que tudo foi roubado durante o período em que estava nas ruas, entre abrigos, albergues e calçadas, sua situação há mais de cinco anos. "Eu tive muito problema com alcoolismo", conta. "Mas hoje, aqui, estou bem melhor."
A ansiedade em ter novamente seus documentos tinha razão. "Sem eles eu não consigo pegar minha aposentadoria por invalidez, comprar remédio que às vezes não tem na farmácia do posto", diz, apontando para o colo — ele perdeu a perna direita há 11 anos, num atropelamento em São Paulo.
Dois dias depois, no mesmo local, Eurico retirou a Certidão de Nascimento que há anos não via. Guardou o papel dobradinho como um tesouro. Uma semana depois, porém, sofreu novo revés. Na hora de tomar banho, a carteira escorregou da calça e caiu direto no vaso sanitário. Correu para salvar o que dava — e hoje guarda a certidão amarrotada dentro de um livro para secar por inteiro e não esfarelar. Ele abre as páginas e mostra o documento, onde se lê seu nome completo, filiação, data e local de nascimento.
"Sem documentos, não tem nada para comprovar quem sou eu. Se a polícia me parar para averiguação, o que eu faço?", diz.
2,7 milhões sem certidão
Essa é apenas uma história num mar de invisibilidade em que está mergulhada parte considerável do Brasil. Algumas pessoas passaram a ser reconhecidas oficialmente pela primeira vez semana passada, durante a primeira edição do "Registre-Se", mutirão organizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). No mutirão foi possível emitir segunda e primeira via de documentos fundamentais para se existir no País.
O evento foi instituído por um ato normativo e entrará no calendário do judiciário -- a ideia é transformar em programa permanente, com uma segunda edição ainda este ano.
E há urgência para isso. Mais de 2,7 milhões de brasileiros não possuem certidão de nascimento, aponta o Censo de 2022. "É um número muito espantoso", observa Caroline Tauk, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça.
"O mutirão tomou uma proporção maior do que a gente esperava e as histórias foram muito marcantes. São pessoas de origens diferentes: indígenas, pessoas trans, idosos, jovens que só querem trabalhar. Por diversos motivos essas pessoas precisam ter sua identificação."
A juíza conheceu de perto algumas dessas histórias. A mais marcante, conta, foi a de Valdelicia Fernandes, logo no primeiro dia do mutirão em Brasília, no Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro POP), na Asa Sul.
A cozinheira cearense de 32 anos era uma das primeiras da fila. Mulher trans e analfabeta, ela está em situação de rua desde os 10, quando saiu da casa da família no interior. Estava ali para conquistar sua certidão — a primeira com o nome social escolhido. Diante das autoridades, sorriu para as fotos mostrando o documento. "Estou renascendo de novo", disse.
A história de Valdelícia se conecta com a do agricultor Manoel Mourão, no Macapá (AP), que não compartilha da mesma realidade nas ruas. Mesmo assim, aos 71 anos de idade, ele obteve pela primeira vez sua certidão de nascimento — após passar a vida ouvindo que ele nunca tinha "existido de verdade". A história sensibilizou os servidores locais. Só agora, Manoel pode ter direito à aposentadoria e benefícios médicos do Estado.
Casos como este são chamados de "registro tardio". Para isso, deve ser comprovado o local e o dia do nascimento por meio de algum documento ou de testemunhas. "Muitas pessoas sequer sabem que existe essa possibilidade de você se registrar anos depois que nasceu", explica Caroline Tauk.
O primeiro "Registre-se" teve como foco a população em situação de rua e, por isso, aconteceu em pontos estratégicos, como o Centro Pop de Brasília e o Chá do Padre em São Paulo. "A gente sabe que se fosse feito nos tribunais a população não ia comparecer", observa a juíza. "O judiciário precisa estar perto das pessoas necessitadas."
Com muitos documentos a serem emitidos em todo o Brasil, o balanço do mutirão é ainda parcial, mas significativo: mais de 100 mil emissões de documentos, 15 mil apenas de certidões de nascimento. "São pessoas em situação de rua, mas também povos originários, ribeirinhos, egressos do cárcere", relata a juíza. "O que é muito básico para gente, para eles é um sonho."
O primeiro da fila em São Paulo concorda. Eurico quer, com os documentos novos, comprovar a terceira idade para conseguir uma moradia social na capital paulista. Por isso, guarda também, no meio do livro, os protocolos de retirada do novo RG e do Título de Eleitor. "Vou pegar essa semana e tomar mais cuidado. Sem isso, eu fico sem chão."
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