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OPINIÃO

Na Marcha para Jesus de 2023, Tarcísio de Freitas foi o mais abençoado

08.06.2023 - Governador de São Paulo Tarcísio de Freitas ora ao lado de Estevam Hernandes durante a Marcha para Jesus, em São Paulo - Marcelo Oliveira Março/Futura Press/Folhapress
08.06.2023 - Governador de São Paulo Tarcísio de Freitas ora ao lado de Estevam Hernandes durante a Marcha para Jesus, em São Paulo Imagem: Marcelo Oliveira Março/Futura Press/Folhapress

Ranieri Costa*

Colaboração para o TAB, de São Paulo

11/06/2023 04h00

Ir pela primeira vez à Marcha para Jesus prova que a dimensão do que acontece no evento da família de Estevam Hernandes só é realmente entendida por quem se espreme no meio da multidão. Quem tentar descrever a marcha, sem participar dela, irá fracassar.
Para entender melhor a população evangélica do país, basta ver o que acontece ali. Edir Macedo, Silas Malafaia e Valdemiro Santiago, entre outros medalhões da liderança evangélica brasileira, não possuem cadeira cativa no evento.

A Marcha é para Jesus, mas os holofotes ficam mesmo voltados para os Hernandes, que têm suas fotos estampadas nos trios elétricos e são ovacionados pelo caminho. Quando decidem descer dos caminhões e ir até a multidão, recebem tratamento de popstar. O público parece já não se lembrar — ou sequer saber — dos escândalos envolvendo o casal, como a prisão e o bloqueio de bens.

O casal da Igreja Renascer em Cristo trouxe a marcha para o Brasil, em 1993, inspirado na "March for Jesus" realizada em 1987 em Londres. Os evangélicos ingleses, no entanto, organizaram a marcha juntamente com os católicos, amizade que não acontece por aqui. Aliás, há quem diga que a realização de uma festa evangélica num feriado tradicionalmente católico seja pura provocação. A disputa de fiéis desnuda um dos motivos iniciais do apóstolo quando começou a marcha: dar maior visibilidade aos evangélicos e à sua igreja, especialmente.

Estevam Hernandes, durante Marcha para Jesus de 2023, em São Paulo - Ranieri Costa/UOL - Ranieri Costa/UOL
Estevam Hernandes, durante Marcha para Jesus de 2023, em São Paulo
Imagem: Ranieri Costa/UOL

A marcha e a política

O evento, por meio de seus líderes, sempre flertou com a política, e houve um incentivo nos últimos anos a isso. Bolsonaro foi a grande estrela dessa era. O ex-presidente, que não participou da edição de quinta-feira (8), acostumou-se a ser idolatrado e defendido fervorosamente pela maioria dos caminhantes da Marcha. Faixas e camisetas de apoio ao ex-presidente, além de manifestações de teor golpista, foram vistas em anos anteriores; mas isso não se repetiu agora.

Com o país num outro cenário, o semblante dos participantes era de quem estava carente de um líder para chamar de seu. Bolsonaro não veio em carne, mas o espírito, de certa forma, estava ali. Isso era percebido pela quantidade de pessoas que vestiam a camisa da seleção brasileira e carregavam bandeiras do Brasil. A decoração dos trios elétricos e a arte da camisa oficial do evento foram feitas nas cores verde e amarela.

Houve lampejos da frustração de parte da direita evangélica no momento em que Jorge Messias, ministro da AGU - apresentado como diácono de uma Igreja Batista - foi vaiado ao transmitir uma mensagem de Lula. O plano comunista de perseguição aos cristãos logo que o petista fosse eleito, propagado pela campanha de Bolsonaro em 2022, se mostrou, outra vez, mentiroso; afinal, a Marcha Para Jesus vai muito bem, obrigado.

O ministro foi acompanhado pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), peça-chave de Lula para se aproximar da população evangélica e que foi chamada de "mulher de Deus" pelo apóstolo. Mas ela saiu do palco da mesma forma que entrou: em silêncio.

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), este sim, recebido com maior euforia que a deputada e o ministro de Lula, mostrou ter como estratégia política a aproximação da população evangélica; em sua fala, que se assemelhou a de uma pregação pentecostal, fez orações, disse estar liberando palavras proféticas e finalizou declarando que "São Paulo é do Senhor Jesus". Tarcísio é católico.

Além do governador, André Mendonça, ministro do STF - classificado por Bolsonaro como o ministro terrivelmente evangélico - também esteve no evento e usou do espaço para pregar ao público presente e pediu orações em seu favor.

Tarcísio e André receberam, de joelhos, orações mais fervorosas que a equipe de Lula. O apóstolo Estevam Hernandes até tentou, mas não conseguiu esconder sua preferência entre os políticos que subiram ao palco.

A maneira como Hernandes se dirigia ao governador, enfatizando ao público suas virtudes, em especial a de ser "um homem temente a Deus", ofereceu spoilers de que a vaga na liderança da direita evangélica brasileira parece ter encontrado um novo messias, pelo menos em São Paulo.

Marcha para Jesus 2023 - Ranieri Costa/UOL - Ranieri Costa/UOL
Imagem: Ranieri Costa/UOL

A fé dos que marcham

A quem é evangélico mas não está acostumado às simbologias próprias da Marcha, chama a atenção a presença de elementos que pertencem à fé católica, como a própria caminhada — tendo em vista que essa prática de procissão para abençoar as pessoas e os lugares por onde se passa é tradição anterior aos protestantes. A ideia de caminhar em situações de desconforto (que remete ao sacrifício), dos pedidos de oração colocados dentro dos tênis, de carregar fotos de pessoas que precisam de um milagre, tudo isso remete a outras experiências de espiritualidade que não possuem suas origens no protestantismo histórico.

O trabalho das igrejas neopentecostais transformou parte da fé evangélica em um exercício cheio de adereços, amuletos e sincretismos. É uma fé sincera, certamente, mas também uma identidade religiosa embaraçada.

Para alguém que participa da Marcha pela primeira vez, impressiona o tamanho da multidão de fiéis — 2 milhões para os organizadores, 300 mil para a Polícia Militar — em busca de milagres e experiências sobrenaturais, ignorando o forte calor. Não foi difícil encontrar pessoas desmaiadas pelo caminho e quase que sendo pisoteadas pela multidão, com o propósito de expressar publicamente sua fé.

Marcha para Jesus de 2023 - Ranieri Costa/UOL - Ranieri Costa/UOL
Imagem: Ranieri Costa/UOL

Ainda que muitos ali acreditem ser indispensável tal sacrifício para a experiência de uma fé poderosa, nos Evangelhos Jesus se distancia da religião dos sacrifícios, presente no Antigo Testamento, e ensina sobre a religião do amor e generosidade com os que sofrem. Se o ajuntamento da Marcha decidir imitar aquele por quem diziam estar marchando, não há um incrédulo sequer que se incomodará.

* Ranieri Costa é teólogo, jornalista e mestre em Linguagens, Mídia e Arte pela PUC-Campinas.