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'Sem silenciar a voz crítica': Agualusa rebate o autor de 'Torto Arado'

"Qualquer crítico que se atreva a resenhar desfavoravelmente os livros de Itamar passa a ser um branco racista", diz o angolano José Eduardo Agualusa - Bruno Santos/Folhapress
'Qualquer crítico que se atreva a resenhar desfavoravelmente os livros de Itamar passa a ser um branco racista', diz o angolano José Eduardo Agualusa Imagem: Bruno Santos/Folhapress

Vagner Fernandes

Colaboração para o TAB, do Rio

02/07/2023 04h00

No dia 3 de junho, o escritor angolano José Eduardo Agualusa trouxe para a sua coluna semanal no jornal "O Globo" a polêmica envolvendo o autor baiano Itamar Vieira Júnior, que reagiu a duas críticas feitas a seus romances "Torto Arado" (2019) e "Salvar o Fogo" — que acaba de ser lançado pela editora Todavia.

Intitulado "Carta a um escritor que aprecio" e referindo-se diretamente ao colega brasileiro, o texto de Agualusa começa assim: "Mal nos conhecemos. Não somos amigos; permite-me, contudo, que fale contigo como se fôssemos". O escritor angolano cita então a resposta dada por Itamar à crítica de Lígia G. Diniz, na revista "Quatro Cinco Um", para quem "Salvar o fogo" se perde ao recorrer a "expedientes gastos da literatura" e ao tentar reproduzir "o fascínio de intelectuais pelo 'auto-ódio' dos negros".

O autor brasileiro fustigou a resenha em sua coluna na Folha de S.Paulo. "O pacto da branquitude é implacável", escreveu Itamar. "O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo." E concluiu: "Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores — como ocorreu com 'Quarto de Despejo' ou 'Torto Arado' — ainda vai, mas dois já é demais".

Em 2021, época do lançamento de "Torto Arado", uma crítica da jornalista Fabiana Moraes, do "The Intercept", também fora considerada racista pelo autor. Fabiana, que é negra, respondeu.

Agualusa afirmou, em sua coluna, que "atacar um crítico por fazer o seu trabalho prejudica-nos a todos, leitores e escritores, sobretudo numa época em que já temos tão poucas pessoas praticando, com profissionalismo, essa arte em decadência". A polêmica desencadeou discussões sobre quem possui autoridade para discorrer sobre temas relacionados a grupos sociais e étnicos.

Na entrevista a seguir, exclusiva para o TAB, o escritor angolano detalha seu ponto de vista, enfatizando a importância da discussão sobre racismo, mas criticando a interdição da crítica com base em critérios raciais. E questiona: "Parece que qualquer crítico que se atreva a resenhar desfavoravelmente os livros de Itamar passa a ser automaticamente um 'branco racista', independentemente da sua origem étnica".

TAB: Por que há cada vez menos espaço nos grandes veículos para a reflexão crítica sobre obras literárias?
JEA: Creio que tem a ver com o colapso da imprensa escrita, a nível global. Os jornais empobreceram, regra geral, devido à quebra com as receitas das vendas e de publicidade. Por um lado, passaram a ter menos páginas. Por outro, não têm como pagar a críticos literários. O jornal português "Público", onde trabalhei, tinha, há vinte anos, jornalistas nas redações apenas para escrever sobre literatura, teatro ou jazz. Sim, tinha um grande repórter, aliás um extraordinário jornalista, que apenas escrevia sobre jazz. Naquela época havia um grosso suplemento literário, o Mil-Folhas, com largo espaço para a crítica literária. Os críticos literários tinham então uma enorme influência. O jornal não aceitava sequer ofertas das editoras, porque isso poderia ser considerado uma forma de pressão. Ou seja, o jornal comprava todos os livros! Hoje em dia a crítica literária sobrevive no mundo de língua inglesa, com alguma saúde, e também na França, embora tenha perdido vitalidade. Na Espanha, tanto quanto me apercebo, também decaiu muito. No universo lusófono, infelizmente, quase desapareceu. Quem são hoje os grandes críticos literários nos nossos países?

TAB: Não só Itamar Vieira Júnior, mas também Stefano Volp têm sido autores hostis às críticas de suas obras. No caso de Itamar, ele acusou de racismo uma crítica negra do "The Intercept" e o fez recentemente com outra, da "Quatro Cinco Um". Como avalia essa postura?
JEA: Parece que qualquer crítico que se atreva a resenhar desfavoravelmente os livros de Itamar passa a ser automaticamente um "branco racista", independentemente da sua origem étnica. Você quer ser branco? Então, critique o Itamar! Falando sério: essa atitude incomoda-me por vários motivos. Primeiro, acho uma ofensa a todas aquelas pessoas que enfrentam situações de racismo. O racismo é um problema real. É uma dor real. Não se pode minimizar esse problema, particularmente no Brasil, um país onde a maioria das pessoas têm origem africana, mas que continua sendo governado por uma minoria de pessoas de origem europeia. Os brasileiros "brancos", ou seja, que são vistos como "brancos" pelos restantes, detêm não só o poder político, mas também o poder econômico e cultural. É isto que tem de mudar. Em primeiro lugar, o Brasil precisa se descolonizar. Por outro lado, a atitude de Itamar me incomoda, porque é uma tentativa descarada de silenciar qualquer voz crítica. Todas as tentativas de silenciamento me incomodam. Finalmente, aquilo foi mais um linchamento virtual, por parte de uma pessoa com enorme poder -- o próprio Itamar --, contra alguém sem poder algum. Dito isto, acho importante acrescentar que vivi o sucesso de Itamar com enorme alegria, e, dentro das minhas escassas possibilidades, tentei contribuir para o mesmo. Porque, enquanto leitor, o primeiro romance dele foi para mim uma belíssima surpresa.

TAB: A escolha de críticos deve ser pautada pela racialização? Ou seja, assim como o mercado editorial criou um nicho para autores negros, deve dar voz a críticos literários negros e só a eles permitir a análise dessas obras?
JEA: Obviamente que não. Isso é uma armadilha criada pelo infame sistema racista que perdura no Brasil. É um pouco como o sistema de bantustões que o regime do apartheid criou na África do Sul, territórios onde as populações de origem bantu poderiam se governar a si próprias. Na realidade, o que o regime do apartheid pretendia com isso era afastar os negros do restante território, afastá-los de toda a riqueza e prosperidade. Primeiro, retirava-lhes a nacionalidade, depois a própria humanidade. Escritores são entidades plurais. Um escritor contém em si -- tem de conter, ou não será um escritor -- a humanidade inteira.

TAB: A necessidade inquestionável de visibilização e reparação dessas maiorias minoradas pode levar a distorções, impondo aos críticos um olhar condescendente?
JEA: Condescendência é paternalismo e paternalismo é uma das formas mais insidiosas de racismo. E sim, infelizmente, vemos isso acontecer com muita frequência no Brasil. O que sinto é que o Brasil atravessa um momento de perplexidade, de confusão, no seu caminho para uma sociedade mais justa. Os brasileiros de origem europeia estão assustados com as reivindicações da maioria, sentem que podem perder privilégios, e reagem a isso. Muitos reagem apoiando projetos políticos conservadores e racistas. Outros, quase tão desorientados quanto os primeiros, demonstram atitudes paternalistas, sem se darem conta de que estão com isso diminuindo, humilhando, a maioria da população de origem africana.

TAB: O marketing editorial tem se beneficiado do movimento do mercado à abertura de autores negros e de obras com temáticas afins. O senhor acredita que esse interesse vai continuar?
JEA: Enquanto romancista, e tendo viajado muito através do Brasil, conhecendo relativamente bem o país, acredito que esse vastíssimo universo ao qual poderíamos chamar o "Brasil africano" tem um enorme potencial literário. Primeiro: há ali grandes histórias esperando ser contadas -- e Itamar, por exemplo, começou a fazê-lo; em segundo lugar, esse é também um território de experimentação e enriquecimento da nossa língua. Escritores podem e devem explorá-lo. Não me parece mesmo nada que a exploração desse universo seja um fenômeno de moda. Parece-me, pelo contrário, que é o futuro da literatura brasileira. A literatura brasileira será negra -- ou não será.

TAB: O racismo estrutural torna os críticos, de fato, mais condescendentes em relação a alguns escritores em detrimento de outros?
JEA: Sim. Sem dúvida. Já respondi antes a essa questão. O Brasil precisa se descolonizar, é preciso que a maioria de origem africana alcance o poder a que tem direito, em todas as esferas da sociedade brasileira, ou seja, a nível político, econômico e cultural. Só assim será possível vencer o racismo, nas suas diferentes formas, as mais violentas e aquelas aparentemente mais brandas -- como o paternalismo --, mas não menos perniciosas.