Subnotificação ou migração massiva? O que explica a queda demográfica no RJ
Numa madrugada de novembro de 2017, a casa de Camille Freitas, então com 15 anos, foi invadida por dois homens usando fardas da polícia civil. Encapuzados e portando fuzil e revólver, entraram na residência da família no Parque Alian, em São João de Meriti (RJ). Avisaram que o pai de Camille, Hélio, seria preso. O comerciante percebeu que se tratava de uma fraude e fez a filha e a esposa pularem para a laje do vizinho, até a polícia (a de verdade) chegar. Os homens fugiram. No mesmo dia, a família juntou as coisas e se mudou para Cabo Frio, na Região dos Lagos, a 180 km de São João.
"Fomos basicamente expulsos", diz Camille. A estudante de medicina conta que, na época, estava virando costume milicianos entrarem na casa de comerciantes da região e ameaçá-los.
A família, que há gerações morava em São João de Meriti, deixou a casa própria para trás e viveu provisoriamente numa quitinete de veraneio em Cabo Frio antes de alugar um apartamento na cidade.
Depois de um ano, como ainda tinham um mercadinho de bairro na Baixada Fluminense, precisaram voltar ao Rio, mas escolheram o Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste da capital — longe de São João. "A gente queria sobreviver de forma mais confortável."
A família não estava acostumada ao estilo de vida no Recreio. A irmã mais velha de Camille chegou a voltar para São João de Meriti quando casou, em 2022, e morou por alguns meses no bairro de Éden. Mas sua casa também foi invadida por um assaltante, que entrou pela janela basculante e roubou uma carteira e alianças. O casal se mudou de vez para o Recreio no fim do ano passado.
Outras duas tias de Camille também saíram de São João nos últimos anos: uma foi para Coroa Grande, próximo à Costa Verde fluminense e a outra se mudou para João Pessoa, na Paraíba. "A gente não conseguiu continuar morando lá", diz Camille.
Até 2021, a cidade de São João de Meriti era conhecida como "formigueiro das Américas" por causa da alta densidade demográfica. A cidade ainda está entre as mais povoadas do país, o que torna difícil imaginar um buraco demográfico nas ruas e praças sempre lotadas. Mas, segundo os dados do último Censo, quase 46 mil pessoas (o que corresponde a 10% da população) deixaram de morar em São João de Meriti desde 2010.
Como o município teve mais nascimentos que mortes nesse período, o fator demográfico mais importante a explicar a drástica redução populacional é a migração.
Mais dúvidas que certezas
Só que a queda se repetiu em outras cidades da Baixada Fluminense e da região metropolitana do Rio, além da própria capital. Duque de Caxias, vizinha a São João, perdeu 115 mil residentes, já descontando o número de mortes e nascimentos. Outras quatro cidades da Baixada Fluminense (Nilópolis, Mesquita, Paracambi e Nova Iguaçu) também encolheram. Ao todo, nove cidades da região metropolitana perderam população.
Em São Gonçalo, o déficit chegou a 138 mil pessoas, o que a torna a cidade que mais perdeu habitantes no Brasil, proporcionalmente (entre os municípios com mais de 100 mil pessoas). Segundo os números do Censo, é como se a cidade perdesse 134 moradores a cada 1.000 habitantes. Para se ter uma dimensão do que significa esse número, no auge da guerra da Síria (2013), a taxa migratória foi de 116 pessoas a cada 1.000 habitantes.
"É gente demais", resumiu o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, pesquisador aposentado do IBGE e ex-professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas da instituição. Quando ele analisou as prévias do resultado do Censo de 2022, o esvaziamento de São Gonçalo, São João de Meriti e Duque de Caxias chamaram sua atenção. "Não consigo explicar esses números demograficamente. Tenho mais dúvidas que certezas", diz.
Na avaliação do pesquisador, a migração é um fator, mas sozinha não explica o tamanho da perda populacional observada nessas cidades. Segundo ele, existe "certo limite" para que municípios vizinhos absorvam novos moradores. "Precisamos de mais estudos para entender o que aconteceu de fato."
Para o demógrafo, a hipótese mais plausível é que parte da população de São Gonçalo e das cidades da Baixada não tenha entrado nas novas estatísticas do Censo. Seriam regiões dominadas pelo tráfico, pela milícia ou em disputa — e que têm parte do seu território inacessível por causa de barricadas e ordens dos poderes paralelos.
"É possível tratar os dados estaticamente e imputar a parte da população que não responde ou está ausente dos domicílios ocupados. Mas fica muito difícil quando o Censo sequer consegue entrar e acessar esses domicílios", diz Alves.
'Eles monitoravam tudo'
Em São João de Meriti, a cidade violenta que a família de Camille Freitas deixou para trás, os recenseadores foram impedidos de entrar em diversos locais. Moradores da comunidade do Buraco Quente, uma das mais perigosas da cidade, relatam que os agentes não passaram para fazer as entrevistas em algumas ruas com barricadas.
A recenseadora Kelly Barreto, 38, que trabalhou na cidade, conta que muitos colegas tinham medo de passar muito tempo nas regiões mais violentas e registravam os domicílios como "vagos". "Perto de algumas bocas de fumo em Vilar dos Teles, os traficantes não deixaram a gente entrar para fazer a pesquisa, aí tinha que botar como vago também. Eles monitoravam tudo." Segundo ela, os próprios moradores indicavam os locais onde os agentes não deveriam circular.
O número de casas "vagas" era tão grande que a equipe de São João realizou uma "caça aos vagos" depois da coleta inicial. Segundo um supervisor que falou ao TAB anonimamente, a maioria dos domicílios que apareciam como "vagos" estavam, na verdade, ocupados.
"A gente teve que fazer essa correção em alguns setores censitários", diz ele, que também presenciou reuniões de supervisores relatando áreas cuja entrada era vetada. Não é possível dimensionar o tamanho (e as consequências) de erros como esses — e se houve setores que não foram corrigidos.
Mesmo com todo o esforço para realizar o levantamento, recenseadores trabalharam em clima de ameaça. O supervisor lembra de uma entrevista que fez, sem saber que estava na casa da família de um traficante de São João. No meio da pesquisa, o homem apareceu e mandou o agente apagar todas as informações coletadas na entrevista.
Ao que tudo indica, o cenário caótico se repetiu em São Gonçalo. Nas redes sociais, moradores disseram que comunidades inteiras deixaram de receber a visita do Censo por causa da violência.
Apesar disso, a demógrafa Marcia Castro, chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard, avalia que a falta de acesso não interfere no resultado publicado pelo IBGE. "O dado divulgado já é tratado, o IBGE fez um esforço para usar imagens de satélite e saber exatamente quais domicílios estavam vazios e corrigir os números. Eu não acredito que a recusa tenha gerado problemas no resultado", afirma ela.
O relatório de pós-enumeração do IBGE, que mede a real cobertura dos dados do Censo e avalia o trabalho de recenseamento, está previsto para ser publicado em dezembro. "Nenhum Censo cobre 100% da população, mas a questão da baixa cobertura pode se mostrar mais grave em alguns lugares. Isso pode ser corrigido no futuro", reforça José Diniz Alves.
Enquanto o relatório não sai, os municípios judicializam os números do Censo. A contagem populacional está diretamente relacionada aos repasses do Fundo de Participação dos Municípios. Em nota, a Confederação Nacional de Municípios pediu um novo levantamento em 2025, "a fim de se levantar dados efetivos e corrigir as distorções observadas".
A grande migração
A demógrafa Marcia Castro, no entanto, vê a perda de população nas regiões metropolitanas como uma repetição natural do que aconteceu em grandes centros urbanos nos Estados Unidos, como Nova York. "A única dúvida, pra mim, é se esse fenômeno [de esvaziamento das grandes cidades] veio para ficar ou não."
Outra questão em aberto é o perfil migratório que os próximos dados podem revelar, para entender por que tanta gente decidiu sair da região metropolitana do Rio. A classe média que conquistou certo poder aquisitivo na última década, como é o caso da família de São João, pôde escolher abandonar a cidade e buscar áreas mais tranquilas, que oferecem lazer e segurança. "Mas nem todo mundo tem essa possibilidade", lembra Castro.
A estudante Leandra Carvalho, 27, saiu de São Gonçalo em 2017 para fazer faculdade de gastronomia na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Era inviável fazer diariamente o trajeto de três horas do bairro em que morava, Jardim Catarina, até a Barra. Leandra morou na casa de uma tia até 2020, quando passou a dividir um apartamento na Mangueira com a irmã e uma amiga que também haviam saído de São Gonçalo para estudar e "tentar uma vida melhor".
"É aqui que estão as oportunidades de emprego e opções de lazer. Meu pai mesmo quer sair de lá também. Não tem como eu voltar para São Gonçalo", diz ela. Alguns amigos de Leandra fizeram o mesmo em busca de educação e conforto, mas precisaram voltar para a cidade natal porque não conseguiram se sustentar na capital fluminense.
A jovem até deu entrada em um terreno na cidade de Maricá, vizinha a São Gonçalo, mas não pensa em voltar para a região tão cedo. "Agora só consigo me ver morando em outro país", afirma ela, prevendo um movimento migratório ainda mais extremo.
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