Gourmet e violento: como javali chegou ao Brasil e virou o temido javaporco

Ele é nativo da Europa e da Ásia, mas encontrou nas áreas agrícolas do Brasil um hábitat ideal: o paraíso do milho, da soja, do trigo e do feijão.

O javali e sua subespécie local, o javaporco, viraram um enorme problema sanitário e estão provocando a fúria de quem vive nas cidades do interior do país.

O que impressiona é ver o estrago que os javalis estão causando. Parece que passou um trator e que alguém vai plantar alguma coisa. Quando os javalis fuçam e reviram o solo, espécies somem.
Michele de Sá Dechoum, do Laboratório de Ecologia de Invasões Biológicas, Manejo e Conservação da UFSC

Tudo começou quando pecuaristas argentinos e uruguaios resolveram investir na caça do animal e no mercado de carnes exóticas, a partir dos anos 1990.

O objetivo era ter um bicho "gourmet", um "porco de sangue azul" de 150 quilos que traria mais lucro — um cateto, porco-do-mato brasileiro, por exemplo, pesa cerca de 30 quilos.

Quando o mercado rejeitou o gosto da carne de javali e o manejo do animal agressivo ficou difícil, eles foram soltos na natureza. Muitos fugiram, cruzaram fronteiras e passaram a atacar ninhadas e a estragar drasticamente a mata.

A multiplicação foi rápida, pois ele só tem um predador natural — onças, que estão em extinção —, explica Felipe Pedrosa, especialista em ecologia e biodiversidade.

Na natureza ou nos criadouros da região Sul, os javalis cruzaram então com o porco doméstico, dando origem a um híbrido chamado de javaporco, animal de até 270 quilos.

Eles são animais rústicos e violentos. Andam em bandos e possuem hierarquias. É preciso usar armas calibre 12 para caçá-los — é a única espécie animal que pode ser caçada no Brasil.

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Os tiros são capazes de perfurar o couro reforçado da espécie, que também é ágil e, quando ameaçada, desloca-se para áreas mais seguras.

Javaporcos e javali
Javaporcos e javali Imagem: Polícia Ambiental

Disseminação criminosa

Esses animais estão presentes em todas as regiões e biomas brasileiros, segundo um estudo recente publicado pelo veterinário Alexander Biondo, da UFPR, no periódico One Health.

Há ainda outro problema, aponta a pesquisa: indícios de ação intencional e criminosa na disseminação do javaporco, que segue um percurso obedecendo à malha rodoviária.

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Não tenho dúvida da ação criminosa. Ele está 'saltando' pedaços de terra para aparecer só onde tem mais caça ou perto das fazendas de caça. Alexander Biondo, um dos autores do estudo.

"Como o animal caminha pela terra, seria preciso ter a notificação da existência dele em todos os lugares. Mas isso não acontece, porque eles caçam o macho e prendem. Então, soltam a fêmea em outros lugares e levam filhotes para criar em casa e soltar em outros lugares."

O Ibama reconhece o problema no relatório Plano Javali, de 2023. O instituto fala em provocar uma "mudança na percepção da presença do javali como oportunidade de lazer e seu uso como bandeira pró-caça e pró-armas".

O órgão deve divulgar ainda neste mês de março um balanço da política.

População só cresce

A população brasileira de javalis, hoje na casa dos 3 milhões, pode crescer até 150% ao ano, estima Rafael Salerno, engenheiro agrônomo e presidente da Associação Brasileira de Caçadores.

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O animal foi registrado em 2.010 municípios em 2022 —em 2016, eram 489.

Javaporco preso em cativeiro, em Santo Antônio do Aracanguá (SP)
Javaporco preso em cativeiro, em Santo Antônio do Aracanguá (SP) Imagem: Charles Caleb/Folhapress

Os dados mais recentes do Ibama mostram que 333 mil javalis foram abatidos entre abril de 2019 e agosto de 2021. O número saltou para 465 mil somente em 2022.

Biondo defende que esse controle seja feito por empresas especializadas, com o uso de armadilhas.

"O javali precisa ser retirado da fauna. Não há nada que compete com ele", adverte. "Mas caça de final de semana não vai resolver."

A venda e criação de javalis são proibidas no país. Em 2006, havia cerca de 50 criadouros no Rio Grande do Sul, estado com maior número de caçadores.

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O último criadouro legal foi encerrado em 2017, quando venceu sua licença.

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