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ONG: emenda de aliado de Paes pagou 400 sacos de pancada a projeto sem boxe

Recursos de uma emenda do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) foram usados por uma ONG para comprar 400 sacos de pancada para um projeto de esporte que não tinha boxe entre as modalidades praticadas.

Pedro Paulo é braço direito do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD). Ele chegou a ser cotado para ser vice de Paes, que tenta a reeleição neste ano.

O ICA (Instituto Carioca de Atividades) pagou R$ 279 mil por 400 kits de boxe à empresa Esporte Global Comércio de Artigos Esportivos entre agosto de 2021 e abril de 2022.

Cada um deles — que contêm um par de luvas de boxe, manoplas de foco (espécie de aparador de socos), protetor bucal e um saco de pancada — saiu por R$ 690.

Também foram compradas mil bermudas de boxe por R$ 70 mil da mesma firma.

A ONG não atestou, contudo, a existência e o uso dos 400 sacos de pancada. O relatório de prestação de contas do projeto elaborado pelo ICA não faz menção tampouco contém fotos dos kits boxe.

O ICA integra uma rede de ONGs suspeitas de desvios de dinheiro público, conforme mostra a série de reportagens "Farra das ONGs".

Entre 2021 e 2023, sete ONGs receberam quase meio bilhão de reais em emendas de parlamentares, a grande maioria do RJ.

A mesma ONG também comprou com recursos de emendas de Pedro Paulo:

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  • 8 sacos de pancada por aluno em projeto de esporte (R$ 347 mil)
  • 33 bermudas de boxe por aluno em projeto com aulas da luta (R$ 139 mil)
  • 600 quimonos em projeto sem luta que necessite do uniforme (R$ 100 mil)

Apesar dos gastos com material esportivo, imagens de projeto do ICA com aulas de ginástica funcional mostram pessoas levantando cadeiras e usando cangas para se exercitarem no chão.

Os projetos são realizados na capital e na região metropolitana do Rio.

Farra das ONGs: Alunos forram chão com cangas em aula de ginástica
Farra das ONGs: Alunos forram chão com cangas em aula de ginástica Imagem: Reprodução

Sem competência para fiscalizar, diz Pedro Paulo

Pedro Paulo disse que indicou as emendas para a Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), responsável pelo acompanhamento dos projetos, e que "não há qualquer ingerência" por parte dele na seleção das ONGs, segundo relata em email enviado por sua assessoria de imprensa.

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No entanto, o UOL teve acesso a documento assinado por ele e encaminhado à Unirio em que o deputado indica nominalmente duas ONGs para tocarem projetos.

Pedro Paulo disse ainda que a fiscalização cabe à universidade e aos órgãos de controle, não tendo ele "competência para realizar individualmente as atribuições dessas esferas institucionais" (veja a íntegra do que disse o parlamentar).

Já a Unirio citou um relatório elaborado pelo coordenador do projeto que relata a oferta de aulas de boxe (leia a íntegra do que afirmou a universidade). "Inclusive, possui comprovações (fotos) de que foram adquiridos uniformes para as aulas de boxe, além dos kits."

No entanto, o relatório final de prestação de contas elaborado pelo próprio ICA e enviado à Unirio não contém nenhuma referência à prática de boxe, fotos ou uso do material comprado.

O ICA afirmou que "as compras realizadas pela instituição seguem a planilha estabelecida pelo plano de trabalho aprovado pelo governo federal" (veja a íntegra da resposta).

O plano de trabalho é um documento de planejamento do projeto feito pela ONG antes da realização do projeto. O UOL constatou que, na prática, ele não reflete o que foi realizado no projeto.

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Só jiu-jítsu

Relatório de prestação de contas enviado pela ONG à Unirio mostra que a maioria dos 26 polos do Integra Rio se destinava a aulas de treinamento funcional — ginástica praticada, em geral, em praças públicas, sem necessidade de grande estrutura.

Seis locais ofereceram aulas de jiu-jítsu, que não necessitam dos kits de boxe.

O ICA anexou no relatório fotos que mostram a precariedade de aulas do projeto, que foi encerrado em julho de 2022 e custou ao todo R$ 4,5 milhões.

Uma das imagens que exemplificam a prática de ginástica no bairro da Tijuca (zona norte) mostra alunos usando cangas para se exercitarem no chão.

No entanto, a ONG pagou R$ 53 mil à Esporte Global por 2.600 colchonetes. A empresa foi procurada por email, mas não se manifestou.

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R$ 22 milhões em emendas

O deputado Pedro Paulo é um dos que mais direcionaram recursos de emendas parlamentares para ONGs suspeitas de desvios.

Entre 2021 e 2023, foram R$ 22,7 milhões em emendas individuais do parlamentar para os institutos Carioca de Atividades e Realizando o Futuro.

Para o projeto Desporto e Educação, de aulas gratuitas de ginástica e esportes, o ICA pagou R$ 100 mil por 600 quimonos à empresa LFL Moreira Comércio e Serviços entre julho de 2022 e junho de 2023.

No relatório de prestação de contas do projeto feito pela ONG, não houve qualquer referência à prática de lutas que precisassem de quimonos. Dos 26 polos abertos, apenas um teve aulas de capoeira.

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No documento, para provar que o material foi entregue, a ONG anexou uma foto de um quimono sem o logotipo do projeto.

Relatório mostra foto de um quimono sem logotipo do projeto para comprovar compra de material
Relatório mostra foto de um quimono sem logotipo do projeto para comprovar compra de material Imagem: Reprodução

A Unirio afirmou que "aparentemente, os produtos comprados foram proporcionais e compatíveis com o descrito no plano de trabalho".

"Apesar disso, vamos averiguar, com os envolvidos, se houve publicações dos dados do projeto para que possamos inserir no Transferegov [sistema do governo federal], em prol da publicidade dos atos da administração."

Mais sacos de pancada

Também com recursos de uma emenda de Pedro Paulo, há um projeto sendo tocado atualmente pelo ICA em que novamente aparece compra suspeita de kits para boxe.

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Para o Mais Cidadania, que oferece aulas gratuitas de ginástica e esportes, a ONG comprou 500 kits com manopla de foco, luva, protetor bucal e saco de pancada entre junho e agosto de 2023.

O valor pago à Distribuidora de Artigos de Esporte Cavacas foi de R$ 347 mil (R$ 694 cada).

O UOL checou o site de inscrições para o projeto e constatou que apenas um dos 42 polos disponíveis oferece aulas de boxe, com duas turmas abertas. A grande maioria é voltada à ginástica funcional.

Como a média nesse tipo de projeto é de até 30 alunos por turma, cada um dos 60 matriculados teria pelo menos oito sacos de pancada para desferir socos.

Sem se identificar, a reportagem pediu em março, por WhatsApp, a uma representante da Cavacas, o orçamento para 50 kits de boxe. Foi dado o valor de R$ 400 — quase R$ 300 a menos que o cobrado do ICA.

Por e-mail, André Luís Barra, dono da empresa, alegou que "alguns kits são personalizados, o que não se compara com outros comuns, que também podem ser fornecidos pela Cavacas".

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"Além disso, os produtos sofrem alteração de preços a depender do período e ano, seguindo a oferta e demanda, tendo em vista que alguns deles possuem poucos fornecedores nacionais", completou.

Ainda no Mais Cidadania, o ICA pagou à Cavacas R$ 139 mil por 2.000 bermudas de boxe - ou seja, uma média de 33 por aluno.

A Unirio disse que fará "averiguação minuciosa" do contrato levantado pela reportagem.

Levantamento de cadeiras

Em outro projeto realizado atualmente com verbas de uma emenda de Pedro Paulo, os gastos com material não parecem se refletir na estrutura oferecida aos alunos.

Vídeos e fotos em redes sociais do projeto Meio Ambiente Informa — tocado pelo Instituto Realizando o Futuro em parceria com a Unirio — mostram pessoas fazendo levantamento de cadeiras nas aulas de treinamento funcional.

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Enquanto isso, a ONG já pagou mais de meio milhão de reais para a empresa North Rio Comércio e Serviços por materiais de apoio, muitos deles até agora sem qualquer utilidade no projeto.

Apesar de não haver nenhum polo de teatro, foram comprados 12 kits de fantoches por R$ 1.785. Outro exemplo são 72 kits de agulhas de tapeçaria e costura, também a R$ 1.785. Não há núcleos dessas atividades.

A Unirio disse que foi informada pelo instituto que os materiais serão usados ao longo do projeto, ainda em andamento.

A ONG Realizando o Futuro não comentou especificamente essa compra. Em nota, afirmou que atua "conforme as rígidas determinações do MROSC [Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil] e da Lei de Licitações".

Contratos de R$ 11 milhões X auxílio emergencial

Outro gasto suspeito diz respeito à realização de eventos. A Jerryx Serviços Especializados e Eventos recebeu R$ 668 mil do Instituto Realizando o Futuro por 40 eventos, sem nenhuma descrição do que seriam. Cada um saiu por R$ 16,7 mil.

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O pagamento foi feito em dezembro, mas o projeto Meio Ambiente Informa só começou as atividades em março.

Criada em julho de 2023, a Jerryx assinou até agora contratos no valor total de R$ 11 milhões com a ONG Con-Tato e o Instituto Realizando o Futuro.

O dono da empresa é Jerry Souza de Santana, que mora em uma casa simples em Mesquita, na Baixada Fluminense.

Entre abril de 2020 e outubro de 2021, ele recebeu auxílio emergencial do governo federal.

Em 11 de abril, o UOL esteve na casa e na sede da empresa de Santana, na Barra da Tijuca, mas não conseguiu localizá-lo. Por email, também não houve resposta.

Documento contradiz deputado

Apesar de o deputado Pedro Paulo afirmar que não tem "qualquer ingerência" sobre a indicação das ONGs que recebem as verbas de suas emendas, o UOL localizou documentos que contradizem a versão do parlamentar em processos administrativos da Unirio.

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Inicialmente, ele destina o recurso à universidade. A instituição informa que não tem como fazer o projeto sozinha. Então, o político envia um ofício indicando qual ONG quer que participe.

O processo se repete com outros parlamentares que indicaram emendas.

A própria Unirio admite que, "geralmente, o parlamentar tem a prerrogativa de indicar a OSC [organização da sociedade civil] que executará o projeto", conforme estabelece uma lei de 2014 que dispensa o chamamento público (espécie de concorrência) em casos como esse.

No projeto Meio Ambiente Informa, por exemplo, um ofício ao reitor da Unirio mostra que o deputado não só indicou o Instituto Realizando o Futuro como ainda pediu que as prestações de contas fossem enviadas a seu gabinete.

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Imagem: Reprodução

Outro ofício localizado pelo UOL em processos administrativos da Unirio mostra que Pedro Paulo indicou nominalmente a ONG ICA para a execução de uma emenda coletiva da bancada de parlamentares do RJ relativa ao projeto de esportes Multiplica Rio.

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Ele também pediu que os relatórios de prestação de contas fossem enviados a seu gabinete.

Conforme mostrou o UOL, o Multiplica Rio é um dos projetos onde há indícios de desvios de recursos.

A empresa Produmix Brasil recebeu R$ 1 milhão para a realização de 55 eventos, dez dias antes de o projeto ser lançado oficialmente, em fevereiro de 2023.

As fotos do relatório da ONG mostram eventos com estrutura simples, que custaram R$ 21 mil cada. Ao todo, a empresa recebeu R$ 4,6 milhões por 220 eventos.

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