Nunes revê R$ 250 milhões de isenção a construtoras para 'moradia social'
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A Prefeitura de São Paulo colocou sob suspeita R$ 249,6 milhões em isenções fiscais concedidas ao mercado imobiliário para a construção de "moradias sociais" na capital.
Essas isenções dizem respeito à licença para a construção de 9.000 unidades desse tipo, em 57 empreendimentos —apenas 1,7% das mais de 537 mil "moradias sociais" licenciadas entre 2021 e 2024.
Ou seja: o volume total de isenções que a própria prefeitura concedeu às construtoras —e que vai precisar rever— é muito maior.
O cálculo inédito da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, obtido pelo UOL, é o primeiro passo para que a gestão Ricardo Nunes (MDB) aplique as multas previstas pela legislação a quem burlou a política habitacional da cidade.
Após uma série de denúncias apontarem fraude na destinação dos imóveis, a Justiça determinou em janeiro que a prefeitura fiscalizasse as isenções.

Benefícios não chegaram ao público-alvo
Desde 2014 a Prefeitura de São Paulo oferece isenções fiscais e urbanísticas para que o mercado privado construa "moradias sociais", as chamadas HIS (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habitação de Mercado Popular).
Em contrapartida, as construtoras devem vender esses apartamentos a famílias com renda comprovada de até dez salários mínimos.
Entretanto, a prefeitura nunca fiscalizou a venda desses apartamentos. A concessão dos incentivos foi atrelada apenas a uma autodeclaração das construtoras.
Sem essa determinação, o setor pôde, portanto, escolher a quem vender "moradia social" na capital e por qual preço.

Calcular a renúncia fiscal do programa é importante, mas não basta, diz o pesquisador Rodger Campos, do Núcleo de Habitação, Real Estate e Regulação do centro de estudos Insper Cidades.

"Tão mais importante é avaliar o impacto da política pública. Houve redução do déficit habitacional no grupo esperado? Se a resposta é negativa, só restou a renúncia de receita, num cenário de transferência às avessas", afirma.
Bairros de alto padrão concentram suspeitas
As suspeitas recaem principalmente sobre prédios em bairros como Pinheiros, Itaim Bibi e Moema, onde o metro quadrado de um "studio" licenciado como HIS ou HMP passa de R$ 20 mil.
Nessas áreas, não apenas o valor do terreno é mais caro como também o preço da "outorga onerosa", a taxa que permite a construção de prédios mais altos na cidade.
Obter isenção dessa taxa, portanto, reduz o custo da incorporação e os ganhos do construtor, especialmente se o limite de renda não for respeitado e a unidade for negociada livremente, a preço de mercado.

O caso foi citado pelo Ministério Público como exemplo de burla à legislação vigente.
Além dos 57 projetos já avaliados, outros 150 passam pela mesma análise, segundo a secretaria.
Em nota, a prefeitura disse que "reforçou ter adotado medidas rigorosas para garantir o controle e a correta destinação de unidades de habitação social".
Até R$ 23 milhões de desconto
O maior desconto individual concedido entre os 57 projetos analisados até agora foi de R$ 23 milhões, relativo ao Living Full Vila Nova Conceição, do Grupo Cyrela.
Em construção na avenida Santo Amaro, a planta prevê duas torres de 26 andares com 576 "studios" de 24 m² classificados como HIS 2 —que devem ser comercializadas a famílias com renda mensal entre três e seis salários mínimos.

A construtora também é listada na auditoria com o Living Full Faria Lima, na zona oeste, que teve desconto de R$ 13,6 milhões de outorga onerosa. Ali, são mais 450 apartamentos do tipo HIS 2.
Procurada via assessoria de imprensa, a Cyrela não respondeu à reportagem.
A incorporadora One é a mais citada em número de empreendimentos.
A empresa, que se "especializou em fazer HIS e HMP em bairros nobres da cidade", economizou R$ 34,2 milhões em oito projetos, segundo o cálculo obtido pela reportagem.
A One pagou outorga onerosa em apenas um dos projetos analisados, o One Jurupis, em Moema, na zona sul. O pagamento foi de R$ 968 mil. Sem o desconto, o valor seria de R$ 1,8 milhão.
Localizado na região do Shopping Ibirapuera e ainda em obras, um "studio" de 55 m² ali chegou a ser vendido por R$ 900 mil, segundo informação obtida no atendimento por WhatsApp de consulta imobiliária da própria One —valor 57% superior ao teto de preço definido pela prefeitura para HMPs (destinadas a famílias de seis a dez salários mínimos).
Embora a unidade de 55 m² conste no site oficial da incorporadora, a One diz que não tem unidade de 55 m² à venda, nem fez vendas pelo valor citado.

"A empresa reforça ainda que toda a documentação comprobatória já foi encaminhada à Prefeitura de São Paulo e segue à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais", afirmou, via assessoria de imprensa.
De acordo com um decreto de 29 de maio, imóveis nesta categoria não podem ser vendidos por mais de R$ 518 mil.
A intenção é fazer valer a política de subsídio e assegurar que o público-alvo seja de fato atendido.

Segundo Valter Caldana, coordenador do Laboratório de Projetos e Políticas Públicas Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, as ações da prefeitura vêm em boa hora.
"Passou da hora de São Paulo entender que não adianta mais fazer prédio sem fazer cidade", diz.
SP veta HIS e HMP como Airbnb
O decreto de maio veta a locação de curta temporada em "studios" licenciados como HIS e HMP. A medida tem como alvo imóveis construídos com subsídio público em áreas nobres que viraram Airbnb.
Segundo o secretário municipal de Habitação, Sidney Cruz, esse tipo de utilização é a prova de que a política foi desvirtuada, pois não atende a necessidade de habitação das famílias de baixa renda.
A prefeitura também apertou o controle sobre o aluguel mensal dos imóveis sociais. A partir de agora, o valor cobrado não poderá ultrapassar 30% da renda de interessados na locação.
O UOL também procurou as empresas Benx, Brio, Passarelli e o empreendimento Do It Residences, que são citados na arte que ilustra a reportagem. A Passarelli disse que não se manifestaria.
Benx e Do It não responderam à reportagem.
A Brio afirmou que os projetos de HIS e HPM foram aprovados pela prefeitura. "Em relação as vendas/destinação das unidades habitacionais, é feito uma verificação prévia da renda familiar do interessado, com documentos e informações, em conformidade com os requisitos exigidos pela legislação que disciplina esse tipo de habitação", acrescentou, em nota.
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