Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Filme 'Meu Pai' mostra como é difícil se colocar no lugar do outro

A severidade dos tempos pode nos deixar refratários ao outro. As angústias pessoais nos agridem e eclipsam quem está para além de nossas precárias fronteiras. Como lidar com o diferente se mal conseguimos dar conta do nosso? Nessas ocasiões, algumas estratégias para exercer a alteridade emergem; correspondem ao esforço para alcançar o que parece distante. Este é o caso do uso da expressão "é preciso se colocar no lugar do outro". Embora a ferramenta seja carregada de boas intenções, ela pode impedir o que procura solucionar.
Para discorrer sobre o intrincado tema, certas obras oferecem bons exemplos. É o caso do filme "Meu Pai", dirigido pelo francês Florian Zeller e ganhador de duas estatuetas do Oscar — melhor ator e melhor roteiro adaptado. Fruto de uma peça de teatro escrita por Zeller, o longa conta a história de Anthony (o impecável Anthony Hopikins), um senhor de mais de 80 anos com sinais severos de esquecimento e confusão.
Nos primeiros minutos, vemos sua filha Anne (Olivia Colman) informar sobre a mudança para Paris, com seu namorado. Ela está aflita em deixar o pai naquela condição, sozinho em Londres, e ele inconformado com o destino da filha: "lá não falam inglês". Logo na cena seguinte, Anthony se depara com um homem estranho sentado em seu sofá. A conversa desconcertada sobre os motivos da presença daquele desconhecido é interrompida com a chegada de Anne, a filha, dessa vez sob o corpo de outra atriz (Olivia Williams). O pânico e a confusão embaralham-se tanto na expressão de Anthony quanto para quem acompanha a narrativa.
Sem pretender avançar em muitos spoilers, quero destacar que o filme promove uma inversão da perspectiva: coloca quem assiste no ângulo de percepção de quem está esquecendo. O deslocamento ocorre via o jogo das convenções estéticas tradicionais do cinema. Primeiro, a cronologia é embaralhada, segundo, as mesmas personagens são interpretadas por diferentes atrizes e atores — algo incomum em produções cinematográficas — e, por fim, o próprio espaço do apartamento ganha variados significados na medida em que avança, procedimento típico de encenações teatrais.
A riqueza da narrativa reside no fato de que ela reconhece a existência de uma forma de existir, uma experiência na qual o tempo, o espaço e as pessoas navegam numa lógica própria. Num labirinto em que nós, pessoas sem esquecimento severo, nos perdemos rápido.
Justamente neste ponto, a abordagem pode levar a algumas armadilhas da alteridade. Podemos seguir o raciocínio: "é preciso colocar-se no lugar do outro". Nesse caso, contudo, há dois riscos. Primeiro, porque a sugestão de "colocar-se no lugar do outro" costuma ser falaciosa: o corpo do outro — com suas experiências, suas dores e seus sabores — mora na fronteira do imponderável. Em nenhuma circunstância iremos realmente habitar outra carne.
Segundo, porque esse procedimento pode desaguar num discurso da "empatia" regado a certa autocondescendência. Quando uma pessoa diz "sou empática", o mecanismo alivia uma espécie de culpa e apazigua as inquietações. Nesse caso, expressar comiseração por alguém pode oferecer mais benefícios para "nós mesmos" do que para as pessoas em si, como destaca o antropólogo francês Didier Fassin. Isso porque essa "empatia" demonstraria para nós, e somente para nós, o quão humano realmente somos.
O potencial do filme está, em minha avaliação, em outro lugar: nas dúvidas que ele nos cria. De um lado, por fomentar questões sobre nossos afetos. "Minha mãe percebe o mundo como Anthony?", "Será que eu vivenciarei isto quando envelhecer?". De outro, a obra cria um efeito de confusão para quem acompanha a narrativa: "quem é esta atriz que apareceu?" "Esta cena aconteceu antes ou depois da anterior?".
As dúvidas não são banais, elas promovem um deslocamento. E, assim, o filme permite avançar em duas escalas de reflexão. Na primeira, discutir como podemos embarcar para a alteridade. Nesse caso, o antropólogo Claude Lévi-Strauss propõe: "para poder se aceitar nos outros, é preciso antes recusar-se em si mesmo". Aprender a recusar o que assumimos como nosso carrega o potencial de ampliar nosso escopo de sensibilidades e nos deslocar das bases que nos constituem.
Na segunda escala, podemos discutir os regimes sociais que nos impedem de exercer a alteridade, ou melhor, que reservam para alguns corpos o respeito e para outros a indiferença ou o ódio. Há alteridade possível numa estrutura social racista, misógina e lgbtfóbica? Como reconhecer o outro com prazos perversos e com o acelerado regime econômico?
A alteridade está em crise pela estrutura social na qual estamos imersos, pelo contexto sanitário-político que nos assoberba e pelos procedimentos inebriantes que faz com que optemos por soluções que tendem a nos satisfazer rapidamente, sem alcançar o propósito da reflexão. Ao negligenciar discutir esses procedimentos que nos marcam, o exercício da alteridade se torna árido.
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