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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Copo vazio': livro retrata nossa geração de analfabetos emocionais

"Copo vazio", nova obra de Natalia Timerman - Divulgação
"Copo vazio", nova obra de Natalia Timerman Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

24/09/2021 04h00

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Há algumas semanas, tem sido inviável conversar sobre relacionamentos com amigas sem ouvir a recomendação do livro "Copo vazio", da psiquiatra e escritora paulistana Natalia Timerman. Desde a Febre Ferrante, eu não via tamanho furor entre as leitoras.

Numa noite insone qualquer, pensei "é agora que uso uma leitura de ficção pra tirar a cabeça dos problemas do mundo e pego no soninho". Resultado: virei a noite comendo a história com farofa e fui dormir depois das 6h. É muito difícil abandonar uma leitura com passagens como esta:

Deitada, o quarto escuro iluminado apenas pelo brilho do celular, ela chora diante da fotografia do pau de Pedro.
Natalia Timerman, em "Copo vazio" (Ed. Todavia)

A história de Mirela passa longe do ineditismo. Trata-se de uma mulher autossuficiente que, pelos caminhos misteriosos da mente e do coração, acaba protagonizando uma escalada de loucura ao ser abandonada por um homem mediano que conheceu num aplicativo de paquera — e que sumiu de sua vida da mesma forma que entrou, sem nenhuma explicação.

O livro calou fundo no coração de tanta gente porque todo mundo já passou ou conhece quem tenha passado pela mesma situação do casal, seja a pessoa que abandona ou a que é abandonada sem discutir a questão. Igualmente impactada, passei dias pensando sobre como acontecia o flerte antes de inventarem os aplicativos de pegação.

Na era passada, quando ninguém tinha a possibilidade de abrir um menu de solteiros na tela do celular a qualquer hora do dia ou da noite, as pessoas tinham que enfrentar alguns desafios para flertar. Tipo dar cantada em quem não deu um match de volta, sob risco considerável de sofrer rejeição ao vivaço. Na hora de terminar uma relação — ainda que breve —, o pessoal acabava precisando olhar pra cara do outro com quem estava saindo e contar que não queria mais, já que geralmente os pretendentes apareciam via amigos em comum e, bom, você precisaria mudar de turma, de cidade ou de rosto com cirurgias plásticas diversas para escapar da conversa chata sobre o término.

Uberização dos afetos

A prática de ghosting, evidentemente, não foi inventada pelos usuários de aplicativos; a gente sabe disso por conta da história secular do cara que sai para comprar cigarros e nunca mais volta. Os apps não deram origem à crocodilagem humana, mas acabaram virando facilitadores de uma cultura de descaso generalizado com sentimentos alheios, já que é mais provável que sejamos levianos quando não criamos uma "historinha" prévia com o outro. Por mais boba que pareça, a aventura da conquista analógica já configura história pra contar. Arrastar uma foto para a direita, não.

Assim como Santos Dumont ficou horrorizado ao ver sua invenção sendo usada na guerra, gosto de supor que o inventor do primeiro app de paquera tinha a intenção primordial de furar bolhas e unir gente que nunca teria a oportunidade de se conhecer sem esse recurso, mas já se deu conta do mau uso da ferramenta. Ela também funciona para o bem, claro: testemunhamos incontáveis histórias de amor promovidas por apps. O que é inegável, a essa altura, é que eles acabaram promovendo a uberização dos afetos.

Senão, vejamos. Em entrevista ao El País em 2016, Sean Rad, criador do Tinder, afirmou que "o mundo mudou. Agora as pessoas passam mais horas no trabalho, é preciso ir de um lugar a outro, as agendas são mais apertadas. O Tinder soluciona esse problema social de falta de tempo. Torna o flerte mais simples e próximo".

O erro de cálculo de Rad consiste no seguinte: nada na vida poderia ser menos simples e prático do que lidar com gente em contexto de paixões.

Geração inaptidão

Como é de se esperar, o hábito de "conhecer gente" em ambiente de app vai transformando os costumes de toda uma geração no que concerne aos afetos. É arriscado -- mas não delirante -- dizer que estamos atrofiando habilidades psicossociais básicas, principalmente no caso dos novinhos que entraram na pista depois de 2013, quando houve o boom da ferramenta.

Pouca gente (em especial, gente inexperiente) ousa tomar um fora nas ruas quando há a opção de conversar, ainda que via internet, com quem atestou interesse recíproco via like. Uma das grandes vocações humanas é se esquivar da dor.

O problema é que no mundo pré-match o interesse costumava ser combustível da coragem para tentar uma aproximação num bar, mandar um correio elegante na festa junina ou até para pedir para que um amigo em comum fizesse o papel de Tinder analógico do casal. Antes dos apps, a gente se virava com os recursos de flerte que tinha -- e convertia conquistas em maior quantidade e qualidade, por motivos óbvios.

Por mais que a problemática dos apps de paquera seja assunto antigo, "Copo vazio" chegou aos leitores após um ano de isolamento social intenso e relações mediadas majoritariamente por telas. O fascínio geral pelo livro e seus personagens mostra que o debate, infelizmente, está mais vivo do que nunca.

Implicar com os aplicativos pode sempre soar careta, mas poucas coisas são mais caretas do que tentar otimizar encontros humanos em um contexto tão desumanizador quanto um catálogo de pessoas. Desde tempos imemoráveis também tentamos, sem sucesso, simplificar o amor, o sexo, o romance ou o simples trelelê. Fica a sensação de que dedicar tempo e coragem a esses sentimentos seria uma estratégia mais esperta e menos dolorosa para todos os envolvidos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL