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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Minuta golpista de Torres e Bolsonaro é roteiro de filme da Sessão da Tarde

Ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao lado do seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres - Alan Santos/ PR
Ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao lado do seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres Imagem: Alan Santos/ PR

Colunista do UOL

15/01/2023 04h01

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Um policial trapalhão elabora uma minuta de golpe de Estado com um militar obtuso mais agarrado ao poder do que criança em cima de carrinho de sorvete. O plano dá errado e eles decidem se vingar dos adultos botando fogo no palácio antes de fugir para longe.

Na viagem, os paspalhos descobrem que deixaram para trás, em uma gaveta, a prova impressa e auditada do crime.

Agora essa turma do barulho vai viver muitas confusões e aventuras em suas férias frustradas em família.

Personagens do tipo só poderiam sobreviver e entreter o público em duas hipóteses: num filme da Sessão da Tarde ou no governo Jair Bolsonaro, o único gênio capaz de levar ao Ministério da Justiça uma figura como Anderson Torres — ex-policial federal que, parece, achou uma boa ideia encontrar o ex-chefe dias após trocar o comando da segurança em Brasília e permitir que uma horda de fanáticos tentasse abolir os poderes da República com paus e pedras.

O despautério não ficou impresso apenas na viagem providencial, como se ninguém fosse perceber. Ficou patente na prova do crime, uma denúncia, antes de tudo, da asnice telegrafada.

É preciso muita ilusão sobre a própria inteligência para imaginar que ninguém desconfiaria das intenções golpistas contidas numa junta que seria responsável por destituir a Justiça Eleitoral composta por oito integrantes de um aparelhado Ministério da Defesa.

Era como se um time pedisse anulação do jogo e só aceitasse voltar a campo se os árbitros fossem os jogadores da própria equipe.

A cada dia que passa, fica mais claro que Bolsonaro jamais teve condições de administrar uma quitanda, quanto mais um país. Se conseguiu terminar o governo foi porque, num lapso de perspicácia, cercou-se de gente igualmente inapta. Uma gente que, não fosse por ele, jamais chegaria ao topo da carreira como chegou.

Foi assim que um ator esquecido de "Malhação" e sem reconhecimento dos pares foi alçado a autoridade na área cultural.

Que uma assessora obscura do Congresso virou ministra das Mulheres.

Que um professor sem prestígio na academia se converteu em chefe da Educação.

E que um policial de limitação tão escancarada, agora preso, se tornou titular da Justiça.

Em boa parte, o governo Bolsonaro se resumiu a um amontoado de aspirantes, picaretas, coaches messiânicos e profissionais meia-boca empacados na carreira que viram na bajulação uma chance de mudar de vida.

As razões para amar quem os colocou ali são compreensíveis.

Difícil é entender por que alguém se arriscaria a ser preso gratuitamente — embora muitos tenham financiado ou participado da quebradeira de patrimônio público para proteger seus patrimônios privados.

Em uma charge publicada pelo cartunista suíço Herrmann no jornal Le Monde, da França, bolsonaristas que marcharam em Brasília foram retratados em um grande protesto contra a "ditadura da realidade".

Poucos conseguiram capturar melhor o espírito que une Bolsonaro, seu entorno e seus seguidores mais fanáticos.

Todos ali parecem presos a uma realidade paralela em que seus delírios, medos e certezas finalmente são reconhecidos, empoderados, lustrados e tratados a pão de ló. O reforço positivo e a sensação de ser finalmente reconhecido são uma fonte inesgotável de dopamina. Vicia como droga.

Bolsonaro olhou e deu abrigo a uma multidão de gente esculhambada pela realidade, essa imposição dos fatos que de vez em quando aparece para dizer que não, Deus não disse nada disso; não, subir no telhado do Congresso não faz da madame uma revolucionária; não, o fanático detentor da "verdade" não é tão esperto nem tão inteligente quanto imagina.

Se fosse, não haveria tanta gente produzindo tanta prova de tantos crimes cometidos no dia 8.

As razões para estarem lá eram difusas: autoengano, manipulação, esperteza, causa própria. Mas a estupidez parecia ser um denominador comum.

Anderson Torres, detido sob a acusação de desmantelar a segurança na capital e se escafeder, é a face mais notável de um grupo deslumbrado pela ilusão de poder que ninguém, do ministro abestalhado ao aposentado entediado da nossa rua, parece disposto a abrir mão. Estão todos em marcha, rebelados, contra a própria realidade.

A diferença entre a turma do barulho empoderada por Bolsonaro e um filme da Sessão da Tarde é que só um deles tem humor inofensivo.

Bolsonaro encerrou a carreira militar como um soldado incendiário e perigoso acusado de montar, num papel, um plano para explodir quartéis.

Como presidente, adoeceu e adoeceu um país inteiro. As minutas para implodir a democracia deveriam ser o ato final de sua carreira política.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL