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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Agressividade em público expõe nível de estresse do mundo pós-pandemia

Briga em avião da Latam, no Chile - Reprodução/Twitter
Briga em avião da Latam, no Chile
Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

09/06/2023 04h00

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Incidentes envolvendo passageiros que se recusam a obedecer regras e promovem tumultos em aeronaves pelo mundo cresceram 37% em 2022. É o que aponta um levantamento divulgado nesta semana pela Iata (sigla para Associação Internacional de Transporte Aéreo).

Os números confirmam a impressão de que as pessoas andam um tanto descontroladas desde que começaram aos poucos a sair de casa, após mais de dois anos de pandemia.

Os transtornos registrados envolvem ataques físicos (aumento de 61%), birra para poder fumar durante o voo e até recusa em usar o cinto de segurança.

Os aviões, é claro, não são os únicos espaços em que chiliques do tipo parecem ter explodido no mundo pós-covid. Mas, por razões compreensíveis, servem como território passível de tumultos: diferentemente de outros espaços, ali não há muita margem para relaxamento de regras. Se elas não forem seguidas, ou impostas pela tripulação, o risco é o avião cair ou sequer decolar.

Difícil é explicar isso para quem tem na passagem aérea o certificado de "estou pagando e faço o que bem quiser". Nos meus feeds de notícias, vira e mexe viraliza algum vídeo de pancadaria generalizada em alguma aeronave. Como a do sujeito que saiu chutando bandejas e quebrando poltronas após um suposto surto em um voo da Gol entre São Paulo e Recife.

Se fosse elaborar uma hipótese, diria que, após tanto tempo trancados em casa, em um tempo de mobilidade limitada e muitas perdas (humanas, mas também de experiências), muita gente aciona um sistema de gatilhos ao se ver trancada novamente por algumas horas.

Mas de novo: é só uma hipótese. Ela se baseia na ideia de que o distanciamento e a ausência de contato humano do período atrofiaram algumas atividades motoras da sociabilidade. Ou então saímos tão sensíveis do confinamento que passamos a perambular por aí dispostos a iniciar uma guerra cada vez que somos contrariados.

O acesso a dispositivos móveis serve de registro para a escalada da agressividade — não só no ar, mas também em terra firme.

Dias atrás, uma psicóloga saiu vociferando ofensas homofóbicas contra uma mulher que pediu para que ela, por gentileza, parasse de xingar os pais e os funcionários de um restaurante do Museu do Amanhã, em Niterói (RJ).

Se havia (se é mesmo que havia) alguma autocensura para gente do tipo replicar em via pública a agressividade, quase sempre modulada por preconceitos em vias privadas, ela parece ter se dissipado de vez no período de confinamento.

Ao menos é o que sugerem os registros de casos de ofensas e agressividades em instituições que exigem alguma regra para funcionar. É o caso de aeronaves, mas também de escolas, onde casos de violência explodiram em meio à retomada.

Episódios de pancadaria, como os registrados recentemente em bares, estádios e até entre lojistas da 25 de março, também entram na conta.

Por que isso acontece?

A resposta ainda está em aberto, mas as pistas estão por aí. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou 25% no primeiro ano da pandemia de covid-19.

Uma das explicações apontadas pela entidade é o aumento de um "estresse sem precedentes, causado pelo isolamento social".

Desde então, e mesmo com o relaxamento das regras de distanciamento, se tornaram mais comuns episódios de chiliques de adultos a se comportarem como crianças que não querem tomar banho, ao menor sinal de contrariedade. Tipo fumar com um avião em voo.

Por incrível que pareça, a crise sanitária que exigia controle e esforços coletivos extras para conter a disseminação do vírus desencadeou uma onda de pequenas grandes rebeliões provocadas por quem não aceitava qualquer imposição de limites.

No Brasil, isso ficou visível na postura de seu então presidente e seus seguidores. Uma de suas bandeiras de campanha era eliminar normas e regras que, em sua avaliação, castravam a liberdade individual de ir e vir. Assim foi declarada uma guerra contra cadeirinhas para crianças e radares de controle de velocidade, essenciais para a redução da mortalidade em acidentes de trânsito.

O mesmo pensamento moveu a recusa ao uso de máscaras e a proibição de festas e aglomerações.

Pelo índice de irritação que andamos demonstrando por aí, a impressão é que saímos da pandemia, mas a pandemia não saiu de nós. É como se, ao fim de um período de supressões, já não admitíssemos qualquer barreira a fazer o que bem quisermos da porta de casa para dentro nem da porta de casa para fora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL