Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cecilia Flesch é nova vítima de 'tribunal' que não ouve uma frase até o fim

A jornalista Cecília Flesch (Reprodução / GloboNews) - Reprodução / Internet
A jornalista Cecília Flesch (Reprodução / GloboNews) Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

14/06/2023 11h47Atualizada em 19/06/2023 09h57

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Soube pelo Twitter que a jornalista Cecilia Flesch provocou celeuma depois de participar de um podcast e supostamente criticar em voz alta a emissora onde trabalhava.

Entre a repercussão da entrevista e a decisão da GloboNews de demiti-la, meio mundo resolveu debater agora o "dress code" sobre como falar da firma sem pegar mal. Não é que não pode falar. Poder, até pode. Desde que no bar. Ou na escadaria da empresa, onde costumamos esmurrar paredes e/ou deixar pegadas de choro e dentes rangidos antes de voltar sorrindo ao batente.

O anúncio da demissão provocou, na mesma rede onde fofocas editadas viralizam, o que os alemães chamam de Schadenfreude, ou "alegria do dano". Em tradução livre, é aquele sentimento de satisfação diante do infortúnio de alguém, principalmente se esse alguém for famoso(a).

Não tem outra palavra em português para traduzir a euforia de quem se lembrou que a mesma jornalista já havia caçoado do presidente Lula, por uma fala sobre "adevogados", e correu ao Twitter para celebrar "as voltas que o mundo dá": a apresentadora estava agora desempregada. Não é lindo?

O episódio diz muito sobre muita coisa.

Uma delas é que, aparentemente, ficou distante aquele período da História em que as pessoas ouviam um podcast de mais de dez minutos até o fim. Esse período se chamava "pandemia", quando tudo o que fazíamos no mundo parecia caber numa tela.

De lá pra cá, tudo se resume a cortes e recortes para consumo de quem está fazendo coisas demais para entender que existe a parte e existe o todo. A (in)compreensão de uma coisa por outra tem, aí sim, tradução em português. Chama-se metonímia e é um mal dos novos tempos.

Em sua participação no podcast, é possível entender perfeitamente o contexto em que a jornalista falava sobre os perrengues da profissão. Tipo a dificuldade em manter o interesse do público quando o tema é política ou economia. Posso estar enganado, mas isso é diferente de falar mal do seu (agora ex) local de trabalho.

A certa altura, ela conta que a escolha da profissão exigiu também a escolha por uma vida sem rotina. Algo que só mudou há poucos meses, quando aceitou apresentar o programa das 6h às 9h da manhã e passou a acordar de madrugada para conferir mensagens e ler o jornal.

Lá pelas tantas, Cecilia contou que, pasmem, existem muitos percalços durante três horas de telejornal matutino. Não é o cúmulo?

Um desses percalços acontece quando ela tem dor de barriga e um programa ao vivo para apresentar. Ela, então, descreveu o dia em que precisou deixar uma repórter falando sozinha enquanto corria em tempo recorde até o banheiro para se aliviar.

Em nenhum momento ela disse que estava se lixando (iria usar outra palavra, mas trocadilho tem limite) para a empresa ou seu compromisso profissional. Pelo contrário: dada a pirueta para atravessar os 50 metros do estúdio até o banheiro, ela voltou inteira, e com as mãos lavadas, para seguir em frente às câmeras em tempo cronometrado.

Se eu fosse o chefe dela e ouvisse algo assim, pensaria seriamente se não era o caso de um aumento. O episódio merecia no mínimo uma discussão um pouco mais amadurecida, por parte da direção, sobre códigos e formas de minimizar perrengues do tipo para ninguém precisar tomar Rivotril para trabalhar.

O ansiolítico foi citado por ela como referência ao apelido da emissora entre os colegas: "Rivonews". Eu, que já chamei um antigo lugar onde trabalhava de "Desespero News", em razão do estado catártico iniciado de cima para baixo a cada notícia de última hora, não tive nem como julgar.

Seria uma pena se os ex-chefes de Cecilia Flesch descobrissem só agora, por um podcast, que seus colaboradores precisam de ansiolíticos para suportar a jornada diante do desafio de encarar notícias quase sempre urgentes e quase nunca leves.

Em sua fala, a apresentadora fez questão de dizer que não existe glamour no jornalismo e que não, não é bonito posar de workaholic, feliz e satisfeito o tempo todo, para ser um bom profissional — que ela, até onde sei, sempre foi.

Cecilia Flesch botou uns dedos na ferida ao dizer que ser mãe e profissional é uma conta que não vai fechar nunca e que, após 18 anos de profissão, é difícil não entrar no modo automático ao ler uma manchete. Não disse que essa conta não fecha por culpa de sua emissora, e sim de modo geral — e este nem de longe é um debate novo, embora seja há muito tempo negligenciado.

Cada um descobre um modo de lidar com os estresses inerentes de cada profissão. O dela era jogar TwoDots no celular entre uma entrevista e outra — e, a não ser que ela tenha feito uma pergunta sobre quebra-cabeças ao senador Renan Calheiros (PMDB-AL) em uma entrevista sobre CPI, dava bem para entender que ela estava dizendo que sempre funcionou melhor fazendo muita coisa ao mesmo tempo, desde os tempos em que precisava estudar ouvindo música.

Para quem não tinha tempo para ouvir todo o podcast, bastava conferir algumas linhas de uma frase fixada por ela no Twitter para saber que ela não falou nada além do que já estava ali, em seu perfil, desde 2017: "Ser jornalista é não saber o que vai ser do seu dia. Você pode até fazer planos. Mas tem que deixar todos avisados que os planos podem se tornar inexistentes".

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que Renan Calheiros é senador pelo Rio de Janeiro. Na realidade, ele é senador por Alagoas. O trecho foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL