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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Covardia contra brasileiro 'armado' com flores estilhaça tese armamentista

O brasileiro Matheus Martines Gaidos, morto a tiro nos EUA - Reprodução/Redes sociais
O brasileiro Matheus Martines Gaidos, morto a tiro nos EUA Imagem: Reprodução/Redes sociais

Colunista do UOL

28/06/2023 04h01

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Um entregador de flores brasileiro de 27 anos morreu baleado após uma discussão com seu assassino em Oakland, nos Estados Unidos. Imagens das câmeras de segurança do local mostram o momento em que ele arremessa um buquê em direção ao homem, que revida com disparos.

A desproporção da reação registrada em vídeo é brutal.

Segundo familiares, o rapaz teria provocado a ira do algoz depois de elogiar o seu cachorro. O criminoso não teria gostado da demonstração gratuita de simpatia. Talvez não gostasse também de sotaques estrangeiros naquele bairro. As circunstâncias são ainda obscuras, apesar da clarividência das imagens.

O que se pode dizer é que Matheus Martines Gaidos não teria morrido em segundos se o tutor não saísse por aí armado enquanto passeia com seus animais. Mas ele o faz porque pode. Vive, afinal, em um país que possui 4% da população mundial e o maior arsenal do Planeta nas mãos de civis: 393 milhões, o equivalente a 40% de todas as armas em circulação no mundo.

Cada vez que alguém por lá atira contra pessoas "armadas" apenas com flores pelas ruas ou invade escolas para expurgar o bullying na adolescência, atira também contra o argumento de que mais armas significam mais seguranças na mão dos cidadãos de bem.

Em 2022, um atirador imberbe precisou matar 19 crianças e duas professoras com uma AR-15 em uma escola primária no Texas para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assinasse uma lei para restringir a compra de armas para cidadãos entre 18 e 21 anos. Desde então não havia qualquer verificação sobre antecedentes criminais ou violência doméstica sobre este grupo.

Foi a primeira lei com alguma restrição à venda de armas no país em 30 anos e ainda assim gerou reações da Associação Nacional do Rifle, que apelou para velho e batido argumento a respeito do cerceamento da "liberdade individual" de seus atiradores.

Pois o arsenal em mãos de jovens e adultos americanos é justamente o que coloca em risco o direito à liberdade individual de cidadãos que entregam flores no trabalho e gostariam de voltar para casa sem serem alvejados.

Só no primeiro trimestre deste ano, os EUA já haviam registrado 131 tiroteios em massa, com um saldo de 195 mortos e 503 feridos.

Os números são o principal alerta para as pretensões brasileiras de importar o modelo de autodefesa norte-americano.

Aqui, como lá, ataques de criminosos armados a escolas se tornaram frequentes. Nas duas últimas décadas, o país contabiliza 25 ataques como o ocorrido em uma escola de Cambé (PR), na semana passada, com um saldo de 46 mortos em todos esses anos, segundo o Instituto Sou da Paz. Não, facas não possuem o mesmo potencial mortífero em ataques do tipo.

O atentado no interior do Paraná aconteceu horas depois de circularem pelo país as imagens do assassinato de um segurança em um bar em Itanhaém, no litoral de São Paulo.

O assassino havia se envolvido em uma briga no local, que funciona também como uma balada. Não reagiu bem ao ser convidado gentilmente a se retirar. Já era madrugada quando retornou e foi impedido pelo segurança Gustavo de Carvalho. A vítima tinha 33 anos e atuava como líder da Igreja Apostólica Um Novo Cântico na cidade.

O circuito interno do estabelecimento mostra o momento em que o assassino volta com a arma em uma mão e um copo de cerveja, na outra. Uma prova da covardia é que a bebida seguiu intacta enquanto ele disparava, já com a vítima no chão.

Essa covardia é o rescaldo mais visível do empoderamento, nos últimos anos, de postulantes a Rambo que colocam a vida de meio mundo em risco enquanto batem no peito para defenderem seu "direito individual".

O discurso serve apenas para vender mais e mais armas dentro das quatro linhas da legislação. As cenas de um bangue-bangue promovido em 2022 por clientes que sacaram armas como sacam cartões de crédito em um bar do Rio de Janeiro, em que 50 cápsulas ricocheteiam entre as mesas, cadeiras e balcão, são praticamente um registro cinematográfico e documental do que o país se transformou.

Não menos espantosa foi a cena, semanas atrás, protagonizada por uma mulher que saiu de casa atirando com uma pistola 9mm contra seu próprio portão.

A PM precisou cercar a quadra com dezenas de viaturas para desarmar a atiradora. Ela era psicóloga e dona de uma empresa credenciada pela Polícia Federal para emitir laudos técnicos para porte de armas de fogo.

A mulher saiu atirando após um colapso nervoso e deixou os vizinhos assustados. Agora, eles precisam rezar para que ela não tenha novos surtos; as armas ela já tem.

Com esse nível de preparo, o liberou-geral de armas no Brasil converteu qualquer briga de vizinho, bar ou trânsito em uma possível sentença de morte. Basta um dos dois (no caso, o que está armado) querer.

Alguém está mesmo mais seguro com tantas armas circulando?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL