Topo

Psicóloga que saiu atirando ficou 1 mês credenciada a dar laudos para CACs

Um mês e meio após o incidente, dona da empresa ACS Assessoria Psicológica continua na lista de profissionais credenciadas pela PF - Gustavo Basso/UOL
Um mês e meio após o incidente, dona da empresa ACS Assessoria Psicológica continua na lista de profissionais credenciadas pela PF Imagem: Gustavo Basso/UOL

Gustavo Basso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

24/06/2023 09h43

No último dia 16 de maio, a vizinhança de uma rua residencial na Vila Jacuí, zona leste de São Paulo, se preparava para o jantar quando uma moradora disparou quatro vezes com uma pistola 9mm contra o portão da própria casa, deixando marcas visíveis ainda hoje.

Acionada, a Polícia Militar cercou a quadra com uma dezena de viaturas, incluindo a Rota, tropa de elite da polícia paulista, e deteve a atiradora, a psicóloga Ana Carolina Silva Tavares, 44. Dona da empresa ACS Assessoria Psicológica e credenciada junto à PF (Polícia Federal) para realização e emissão de laudos psicológicos para porte de arma de fogo, a profissional teria tido, em suas próprias palavras, um "colapso nervoso".

Presa em flagrante, ela foi liberada após pagar fiança de R$ 5.000. O processo corre em segredo de Justiça, mas, um mês e meio após o incidente, ela permaneceu credenciada a dar laudos de aptidão psicológica e emocional para interessados na posse e porte de pistolas e até mesmo fuzis — inclusive CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores).

Até sexta-feira (23), ou seja, até 37 dias depois da prisão, ela constava na lista de psicólogos autorizados a dar laudos pela Polícia Federal em São Paulo, com credenciamento válido de 2021 a 27 de abril de 2025. A reportagem do TAB vinha questionando a PF desde o dia 20 sobre os critérios de contratação e um eventual descredenciamento da profissional após o episódio, já que a Instrução Normativa da DPF 78/2014 estabelece que o psicólogo pode perder o contrato em caso de "estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal".

A resposta só chegou às 22h30 de sexta-feira. "O caso em questão foi comunicado oficialmente à Polícia Federal hoje, sexta-feira (23/6) e, com isso, foi instaurado um processo administrativo para apurar o caso. Porém, automaticamente, a psicóloga foi suspensa cautelarmente do quadro de credenciados e ficará assim até o final do processo." O nome da psicóloga foi tirado da página da PF à 0h56 deste sábado (24).

'Confusão mental'

A página da ACS Assessoria Psicológica registra a importância do serviço prestado ao Estado brasileiro: "O porte de arma de fogo traz uma grande responsabilidade". A empresa realiza também exames psicológicos para o MP (Ministério Público) paulista desde pelo menos 2022, e aplica testes psicotécnicos para o Detran (Departamento Estadual de Trânsito).

Segundo o boletim de ocorrência lavrado às 2h da manhã de 17 de maio, a atiradora "aparentou estar sob efeito de medicamentos e sob confusão mental". Inicialmente, ela alegou ter feito disparos por ter ficado trancada no interior do imóvel após um dos filhos sair com a chave do portão. Os PMs, no entanto, verificaram que seus filhos estavam em casa no momento do incidente.

Vizinhos afirmaram ao TAB, sob condição de anonimato, que uma filha de Ana Carolina restringiu a saída da mãe por ela estar desestabilizada após uma discussão sobre guarda e pensão com o ex-companheiro, um delegado de polícia aposentado que foi sócio dela na empresa até 2019.

Segundo o B.O., os policiais encontraram dentro da residência duas pistolas, que a psicóloga afirma serem de sua propriedade e legalizadas. "Sou CAC há 15 anos, minhas armas são legais e nunca efetuei nenhum disparo até aquela noite", afirmou ela, por telefone, à reportagem do TAB. "Muita gente tem arma fria. Eu não sou uma delas."

Psicóloga dá tiros - Gustavo Basso/UOL - Gustavo Basso/UOL
Sossego quebrado: a rua residencial na zona leste de SP foi cercada pela PM e a atiradora, presa em flagrante
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Fragilidades do sistema

Para o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, o episódio expõe as fragilidades do sistema que concede a milhões de pessoas no país a permissão de compra e uso de armas de fogo.

Para o gerente do Sou da Paz, além de maior rigor na contratação de quem produz as avaliações psicológicas, a validade de 10 anos dos atuais laudos psicológicos não é adequada. Ele cita um parecer publicado pelo próprio CFP (Conselho Federal de Psicologia) que afirma ser impossível testar e assegurar a sanidade mental e a estabilidade emocional de uma pessoa por um período tão longo.

"A validade dos laudos deveria ser reduzida para pelo menos 5 anos ou até 2 anos", sustenta ele.

Registros de CAC explodiram ao longo do governo Jair Bolsonaro (PL), um entusiasta do porte de armas, de quase 74.000 novos casos no primeiro ano de mandato para mais de 318.000 em 2022.

Ao longo do governo anterior, entraram em circulação 904.858 novas armas nesta modalidade: cerca de 26 por hora.

O Exército, responsável pelo controle e registro do arsenal em posse do CAC, admitiu ao UOL em 2022 não ter conhecimento de quantas armas há em cada cidade do país.

Psicóloga dá tiros - Gustavo Basso/UOL - Gustavo Basso/UOL
No portão da casa, a marca de um dos quatro disparos efetuados com uma pistola 9mm
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Morosidade

Indiciada no artigo 15 da lei do desarmamento — "disparar arma de fogo em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela" —, Ana Carolina Silva Tavares teve o inquérito relatado ao MP, que em seu parecer afirma que, "em decorrência de seu total desequilíbrio emocional, a ré foi presa em flagrante em situação deplorável que colocou em risco a sua vida e a dos filhos".

Segundo o Ministério Público, em 7 de junho foi celebrado um ANPP (acordo de não persecução penal), ainda não foi homologado pelo juiz. Caso seja aceito, o processo se encerra.