Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Epidemia trans' é uma ideia falaciosa, isso não existe, diz associação

"Crianças trans existem", diz bandeira erguida na Parada do Orgulho LGBT de 2023, em SP - Daniela Toviansky/UOL
'Crianças trans existem', diz bandeira erguida na Parada do Orgulho LGBT de 2023, em SP Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Colunista do UOL

02/07/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

No fim de maio, a pedido do deputado estadual bolsonarista Gil Diniz (PL), a Assembleia Legislativa de São Paulo instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a suposta submissão de crianças e adolescentes a terapias hormonais para transição de gênero no Hospital das Clínicas.

A CPI tem tudo para entregar exatamente o que promete: desinformar e aprofundar o sofrimento de familiares e pessoas já discriminadas o suficiente em seus círculos sociais.

Diniz é um dos nove deputados titulares da comissão.

A proposta aconteceu após uma reportagem mostrar que mais de 250 crianças e adolescentes que se identifiam como transgêneros são atualmente atendidos pelo Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do HC da Faculdade de Medicina da USP.

O programa segue os protocolos e recomendações do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina, mas virou trincheira para a guerra ideológica movida por Diniz e companhia.

Essa guerra é montada com as armas dos falsos argumentos. Como mostrou uma reportagem recente do TAB, as crianças levam um bom tempo para iniciar um processo definitivo de transição. O SUS só permite o uso de hormônios a partir de 18 anos e autoriza cirurgia de adequação de gênero apenas a quem tem 21 anos ou mais.

O que o CFM orienta a crianças e adolescentes, com o devido consentimento dos pais, é o bloqueio puberal com acompanhamento de uma "equipe multiprofissional e interdisciplinar, sem nenhuma intervenção hormonal ou cirúrgica".

Para a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), iniciativas como a da Alesp pretendem, através do negacionismo científico e do pânico moral, proibir a garantia do acesso a cuidados específicos para crianças trans e criminalizar profissionais, familiares e seus responsáveis.

A associação pretende protocolar na comissão uma nota técnica, que contém uma série de orientações a familiares, profissionais de saúde e comunidades escolares sobre o acompanhamento dessas crianças. O texto, assinado por especialistas de diversas áreas, deveria ser lido por todos, não só pelos deputados.

Uma das lutas do movimento é retirar a abordagem do campo da saúde, no qual pessoas trans são quase sempre tratadas como "doentes", e entender a questão sob a perspectiva dos direitos humanos.

A ideia da nota, diz a entidade, é contribuir para erradicar falácias como a de que existe uma "epidemia trans" e um suposto lobby em curso para "transformar crianças cis em trans". Na verdade, diz a associação, o que acontece é a "cisgenerificação compulsória sobre aquelas pessoas que não se enquadram no padrão cissexista de ser e existir".

O documento define como "prioritário o desmonte de discursos e práticas que estimulam uma atmosfera de assédio em relação às crianças trans, que consideram que a saúde precisaria tutelar desproporcionalmente para 'evitar prováveis arrependimentos' e 'futuras confusões na vida adulta'".

A nota afirma ainda que, para além das propostas de políticos autoenunciados conservadores, está em curso uma "ofensiva psiquiátrica às infâncias trans, tomando a medicalização como paradigma de assistência a esse grupo e seus familiares".

Os signatários dizem entender o processo de transição como um conjunto de ações para criar um ambiente social, familiar e político confortável e acolhedor para jovens e crianças trans, sobretudo na primeira infância. Esse ambiente, afirmam, é construído com simples adequações de nomes e pronomes, possibilidade de experimentação de vestimentas diversas e compromissos de não imposição das normas de gênero.

Parece pouco, mas pesquisas apontam que o simples fato de se respeitar o nome social e assegurar o uso devido de pronomes promove uma melhora considerável na saúde mental dessas pessoas, diminuindo ideações suicidas e depressão. "As questões sociais são extremamente relevantes e efetivas, em comparação a um diagnóstico clínico, para a construção de um ambiente social favorável ao desenvolvimento dessas crianças. A presença de um sentimento de acolhimento e uma maior vinculação com a família e o ambiente social está diretamente relacionada a um aumento na confiança, autoestima e maior qualidade de vida de pessoas trans."

Os especialistas frisam que reconhecer o direito à integridade corporal e mental das crianças não é sinônimo de cirurgias, hormônios ou modificações corporais.

Segundo a Antra, mesmo diante dos níveis reais e alarmantes de antipatia, hostilidade e violência a que crianças trans são expostas, a principal resposta que a saúde tem dado a esses sujeitos é a de rotular suas experiências, como se o processo de inscrição delas na literatura médica fosse, por si só, terapêutico.

A nota diz ainda que, "frente a polêmicas e falsas denúncias de que crianças estariam sendo operadas 'à força' ou 'cedo demais', vemos uma oportunidade estratégica para reafirmar alianças com ativismos intersexo, que há anos denunciam, como informam diferentes estudos, a forma como crianças têm seus corpos violados por decisões super impostas a elas".

"O que é entendido como uma 'educação compatível' com crianças é fruto do medo superimposto de que, caso deixássemos de viver no registro do binarismo, perderíamos de vista tudo que entendemos por cultura", diz a nota.

Às vésperas da CPI, que deve iniciar os trabalhos em agosto, a entidade afirma observar com preocupação a ausência de dados sobre a realidade social da comunidade trans. "Até o presente momento, não há literatura significativa que discuta como crianças trans constroem culturas infantis, como orientam e desorientam os significados do gênero, de que forma interpelam as instituições e o que nós, adultos, podemos fazer para que elas caminhem pelos anos sem tantos assédios, violências e silenciamentos."

A ausência desse mapeamento, fruto do preconceito e da ignorância, é o que permite a exploração de falácias políticas para marcar posição, em uma guerra ideológica em que só um lado sofre, adoece e morre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL