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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

500 tons de rosa: como filme da Barbie alavancou vendas e a guerra cultural

Margot Robbie em cena do filme "Barbie" - Divulgação
Margot Robbie em cena do filme "Barbie" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

23/07/2023 04h01

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Olhando em perspectiva, não dá para dizer que Damares Alves errou de todo o prognóstico lançado em janeiro de 2019, quando anunciou a chegada de uma nova era, na qual meninos vestiriam azul e meninas, rosa.

Quatro anos e meio depois, o hype em torno da paleta monocromática do filme da Barbie atesta que ao menos parte da profecia se cumpriu.

É julho de 2023 e, de fato, meninas, quase todas, vestem rosa, assim como mulheres, senhoras, paredes de restaurante, pizzas promocionais e até acarajés.

Para desespero da ex-ministra, hoje senadora, os meninos também aderiram à moda. Alguns por convicção. Outros para mostrar que estão juntos das namoradas para o que der e vier, na saúde e na doença, e se precisar também na fila do cinema. Até que outra moda os separe.

Mesmo que não queiram, os adeptos do azul certamente serão afetados pela onda. Hoje em dia é assim: a pessoa se distrai e, quando vê, está em um vagão do metrô todo pintado de rosa.

Dá para ser homem num mundo assim?, perguntaria um velho colunista, preocupado com a queda das taxas de masculinidade na sociedade contemporânea.

Há quem esteja disposto a resistir até o fim. No dia da estreia do longa de Greta Gerwig (por ironia, lembramos dela por um filme em preto e branco), dois marmanjos saíram da sessão indignados e correram para denunciar: "Vendeu-se um filme infantil, entregou-se um filme feminista, declaradamente feminista, com um toque anti-homem. É perigoso".

A denúncia chamava menos atenção do que os próprios denunciantes. Um deles vestia a camisa do palhaço Krusty. O outro, a do Baby Yoda.

Maldosos dirão que a última vez que eles interagiram com uma mulher foi quando habitavam a barriga da mãe.

A fala, de toda forma, foi compartilhada em tom de alerta. "Vai morrer homem por causa desse filme."

Se a nova profecia se concretizar, seria a primeira vez que o consumo excessivo de álcool, a vida sedentária e as ultrapassagens perigosas em pistas simples conheceriam um fator de risco à altura. E esse fator, quem diria, veio do cinema, um sistema de entretenimento dado como morto não faz muito tempo.

Até outro dia, já tinha religioso com fita métrica na porta de 9 em cada 10 salas de cinema do Brasil esperando a placa de "vende-se" para converter os espaços em novos templos. Até que a cavalaria vestida de rosa entrou em campo e deu às salas e projeção uma inesperada sobrevida. Deve vir daí a bronca de parte da ala religiosa das redes com um filme "lotado de apelação progressista" e que, pior de tudo, "envolve assuntos como feminismo, crise de identidade e autoaceitação".

Só faltava essa: a pessoa compra ingresso e ganha de brinde alguma razão para gostar mais de si. E quem vive da baixa estima alheia para vender a salvação da alma, como fica?

Já que estamos (ainda) numa economia de mercado, a parte positiva de fenômenos do tipo é que eles geram devastações de um lado e oportunidades de negócios, de outro. Empreendedorismo que chama.

Eu mesmo não me lembro de outro filme que tenha inspirado tanta decoração de interiores como agora.

O fenômeno mais parecido com isso aconteceu no fim dos anos 1990, quando lançaram "Titanic" e todo mundo da minha turma, eu inclusive, resolveu adotar o cabelo do Leonardo DiCaprio, com a franja em formato de M do McDonald 's. Não havia rede social na época para consagrar o boato de que o penteado era um viral para vender Big Mac ao som de Céline Dion.

Ao menos ninguém aderiu aos suspensórios do personagem.

Com poucos dias em cartaz, a Barbie, que nasceu mercadoria antes de virar estrela de cinema, botou no chinelo rosa as equipes de marketing de outros sucessos de público que não souberam aproveitar o hit para vender produtos, serviços e padronização estética. Do contrário sairíamos todos fantasiados de Chewbacca, com bolsas e penteados peculiares, quando veio a onda Star Wars.

É que a Barbie soube se reinventar na hora certa. Chegou no auge da onda da nostalgia, em que jovens adultos, acompanhados dos filhos, são maioria da população e do público pagante. Foi tão ajudada pelo espírito do tempo que estreou no mesmo dia da Copa do Mundo feminina e a palavra empoderamento ganhou tração — e hates.

Isso em um contexto pós-pandemia em que as pessoas estão tão ávidas por reencontros que são capazes de passar meses numa fila em busca de um ingresso para um show no fim do ano.

Com seus 500 tons de rosa, a Barbie puxou e foi puxada pelas estratégias digitais que monitoram em tempo real quais são os temas em alta em ferramentas como TikTok.

Quem fica de fora não é visto. E quem entra acaba desaparecendo na multidão padronizada.

Guardadas as proporções, tem sido assim desde o tempo em que era preciso fumar o mesmo cigarro e usar a mesma jaqueta e calça jeans do James Dean para parecer rebelde. Sim: a rebeldia vende.

É nessa hora que a turma de Damares Alves e os que veem tentáculos do capitalismo nas melhores intenções se encontram na mesma bronca. Os últimos se perguntariam: que diabos de revolução contra estruturas pode ser possível quando, para se combater estereótipos, replicam-se todos eles e ainda os embalam de rosa para venda? De coleções de camiseta a apartamentos com parede rosa, passando por promoções e vídeos com dicas para ter o cabelo da loirinha que combate padrões sendo, ela própria, o padrão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL