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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Luxo não tem crise: espera para comprar bolsa Birkin é de mais de um ano

Peu Robles/Folhapress
Imagem: Peu Robles/Folhapress

Colunista do TAB

06/07/2022 04h01

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"A bolsa é falsa, mas a dona é verdadeira."

Ouvi, estupefato, a revelação de que a bolsa da Hermès, posta com todo cuidado sobre uma cadeira por um garçom bem treinado de um restaurante chique, era uma cópia barata.

Quem me contou, com bom humor e ironia, foi uma ricaça do Leblon quando viu minha surpresa diante de mais um exemplar de uma Birkin, modelo mais desejado da marca francesa, trazido para o nosso encontro. A cada vez que nos sentamos para conversar sobre a vida, uma outra bolsa me era apresentada. O espanto era natural.

Naquela altura, um exemplar básico da bolsa já não saía por menos de R$ 80 mil em uma das três butiques da marca no Brasil. Artistas, apresentadoras de televisão, madames e influenciadoras de todos os calibres desfilavam pelas salas VIPs dos aeroportos ou por jatinhos privados ostentando suas bolsas e lembrando que, quando o assunto é luxo, querer não é poder.

Mesmo aqueles com patrimônio e coragem para torrar uma bufunfa num único item não têm o direito de comprar uma Birkin quando dá vontade. Eles precisam entrar em uma fila de espera de mais de um ano para, só assim, garantir o sonhado exemplar. É o tempo necessário para que o couro de milhões seja cortado pelos artesãos, costurado com todo cuidado, preso às ferragens, aprovado pelos supervisores de qualidade. Demora até que tudo isso vire bolsa e chegue às lojas da grife valendo uma fortuna. Em geral, a demanda é maior do que a oferta, o que termina com uma valorização contínua dos produtos e dá, a muita a gente, a certeza de que vale a pena fazer qualquer loucura por um exemplar da marca.

A ricaça tinha sete bolsas do mesmo modelo — três verdadeiras e quatro falsas. Mesmo sendo filha de um ex-presidente de um banco internacional, casada com um herdeiro administrador de um gordo patrimônio familiar, com apartamentos nos quatro cantos do planeta e com bala na agulha para comprar o que lhe viesse à cabeça, o excesso de dinheiro não lhe tirou o juízo. Não via porque ter uma coleção de bolsas verdadeiras se podia usar as falsas e as originais, de acordo com a ocasião. E justificou-se: "no final das contas, se a dona for verdadeira, por inércia, a bolsa acaba ficando também".

Lembrei dessa história quando li uma reportagem recente no The Cut, site de moda e consumo ligado à revista New York norte-americana. O texto ganhou destaque na imprensa internacional por tratar do consumo ostensivo de bens de luxo falsos pelas dondocas de Manhattan. As entrevistadas, com mansões nos Hamptons e enormes apartamentos com vista para o Central Park, há tempos se organizavam em grupos online para trocar dicas e conhecimentos sobre os melhores fornecedores de muambas na cidade.

As RepLadies (moças das réplicas, numa tradução rápida) defendem a compra de itens falsos por terem pena do próprio dinheiro. Com a economia, elas investem em ações ou papéis com alta rentabilidade e podem gozar dos efeitos de uma bolsa de marca sem precisar pagar caro ou esperar tanto pelo produto.

Arredores da Rua 25 de Março, no centro de São Paulo, local de comércio popular e venda de produtos falsificados - Felipe Rau/Estadão Conteúdo - Felipe Rau/Estadão Conteúdo
Arredores da Rua 25 de Março, no centro de São Paulo, local de comércio popular e venda de produtos falsificados
Imagem: Felipe Rau/Estadão Conteúdo

Numa pesquisa feita pela Harvard Business Review, revista queridinha dos homens de negócios, o mercado de produtos falsificados movimenta 4,5 trilhões de dólares todos os anos. Desse montante, pelo menos 70% são transações comerciais de produtos de luxo. Boa parte delas realizadas em plataformas ou grupos online como a das dondocas de Nova York, em fóruns de discussão ou marketplaces com entregas rápidas pelo mundo.

O problema é ainda mais grave. Os dados da Statista Global Consumer Survey de 2021 mostram que pelo menos 20% dos norte-americanos compraram algum produto de luxo falso nos últimos anos e o fizeram sem titubear. Eles adquiriram cópias sabendo o que faziam, com intencionalidade e dispostos a pagar menos por uma réplica do que pagar caro pelo original.

O imbróglio é fruto da própria lógica do mercado de luxo. É quase como se aquilo que foi remédio se apresenta também como veneno. O que desperta os desejos dos consumidores é o que os leva a se jogar nas cópias de boa qualidade sem dó. É tudo sobre o manejo dos símbolos de distinção.

Desde a consolidação do mercado de luxo, ninguém acredita que os altos preços devem-se unicamente ao custo da produção. Afinal, por mais que o couro de uma bolsa Hermès seja melhor que o encontrado nos exemplares do comércio popular, de maneira racional, nada justifica que uma valha mais de 10 vezes o valor da outra.

A diferença tá no simbólico. Isto é, naquilo que ela representa, na distinção que promove em quem a carrega, no poder transformador das identidades, no conjunto das relações sociais e na vida dos consumidores. É no plano das ideias, não só do material, que uma bolsa Birkin assume as cifras astronômicas. Para que "valha a pena o investimento", os itens de luxo precisam funcionar, empoderar os consumidores de tal forma que eles se sintam mais poderosos, únicos e potentes do que aqueles que não os têm.

No entanto, em um mundo marcado por grandes desigualdades sociais (como é o caso dos Estados Unidos e do Brasil), até mesmo o esforço simbólico das bolsas de luxo varia de caso a caso. Uma Birkin original no braço de uma senhora com um capacete de laquê dourado milimetricamente montado num salão de beleza famoso, sentada em uma Mercedes-Benz clássica, a entrar numa mansão em um bairro chique de São Paulo, precisa "trabalhar menos" na diferenciação do que no braço de uma jovem de classe média a caminhar de forma despretensiosa pela Avenida Paulista.

Quem compra e quem carrega o bem divide com o objeto o trabalho simbólico de diferenciação. E, quanto mais enquadrado o consumidor for dentro dos valores das elites, menos preocupação com a originalidade dos objetos eles precisarão ter. Primeiro, por não despertarem tantas suspeições se seus pertences são de fato de verdadeiros. Mas, sobretudo, por saberem que qualquer eventual falta na coisa (por se falsa ou barata) é suprida por um possível excesso do sujeito (membro das elites).

Desse modo, a moda de ricaças comprando bolsas falsas sem a menor preocupação não é um sinal de tempos de crise. Nem estão ruim da cabeça, nem do bolso. Ao contrário: é um reflexo do manejo eficaz dos símbolos, de maneira que, mesmo com pouco dinheiro, seja possível alcançar os mesmo ganhos.

Ao que tudo indica, enquanto houver ricos verdadeiros para todo lado, não faltarão bolsas falsas por aí, agindo sem qualquer suspeição ou dúvida.