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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Silêncio e controle: o que Casimiro diria do luxo da Fazenda Boa Vista?

Suíte do Hotel Fasano da Fazenda Boa Vista, em Porto Feliz - Divulgação
Suíte do Hotel Fasano da Fazenda Boa Vista, em Porto Feliz Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

27/08/2022 04h01

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Cruzei os imensos portões da Fazenda Boa Vista, no interior de São Paulo, com a voz de Casimiro a soar em meus ouvidos.

Já na portaria, imprensado num fosso entre duas muralhas de ferro, uma equipe de seguranças se aproximou do carro e solicitou os documentos. O meu, o do motorista e o do veículo. Com a voz baixa e articulando cada palavra, num tom de padre na sacristia, um deles pediu para revistar o porta-malas.

- Que papinho, hein? Ele meteu essa? —- repeti os bordões de Casimiro, influenciador carioca, como se tivesse junto dele.

Há tempos, Casimiro é famoso pelos conhecimentos futebolísticos e por uma habilidade de comunicação capaz de hipnotizar milhões de apaixonados pela maneira com que fala sobre qualquer coisa. Da relação com a namorada a compra de um celular novo em um shopping, sem deixar de lado os comentários sobre alguma jogada inusitada de um atleta do Vasco, seu time de coração. Ele é hábil na arte de narrar aquilo que, ou teríamos vontade de falar e não podemos, ou diríamos se soubéssemos o que dizer.

São famosos os vídeos de reação ao mundo dos ricos. O influenciador seleciona passeios de outros blogueiros por hotéis de luxo, em voos de classe executiva, visitas a mansões de condomínios trilhardários e comenta, fazendo questão de marcar que, apesar da gorda conta bancária, não faz parte daquele ambiente. A graça de Casimiro vem do fato de que ele está sempre fora do lugar. Foi assim que me senti quando cheguei à Fazenda Boa Vista.

O empreendimento fica a 120 km de São Paulo, na área rural de Porto Feliz, e reúne, numa área sete vezes maior que o Parque do Ibirapuera, os maiores nomes do PIB nacional. Vejam só: é ali que "sua mulher sai para caminhar de manhã com a esposa do dono do seu banco" — ostentou um proprietário antigo de um imóvel no condomínio, numa entrevista recente à revista Veja São Paulo.

Entre dois enormes campos de golfe, hípica para cavalos de raça, horta orgânica, uma pequeno comércio com lojas de qualquer shopping de luxo da capital paulista, está o primeiro hotel da rede Fasano no campo. Erguido à beira de um lago, o suntuoso prédio do arquiteto dos grã-finos Isay Weinfeld distribui 39 quartos numa tripa de pedra sobre o terreno com vista para os milhares de hectares de uma vegetação milimetricamente domada por funcionários treinados. Aos hóspedes, sob o custo de diárias para lá dos R$ 3.000, dá-se o direito de se misturar à paisagem e ter a sensação de que sempre estiveram ali, na mesma posição.

Tanto os moradores — dispostos a pagar até 6 milhões de reais por um terreno ou 12 milhões de reais por uma casinha geminada na Vila Fasano — quanto os hóspedes desesperados por um canto qualquer no hotel lotado buscam na Fazenda Boa Vista a possibilidade de viver o "desde sempre", objeto de desejo das elites há muito tempo.

Para os endinheirados brasileiros, uma boa gestão do tempo pode ser o remédio ou veneno na invenção de quem são. É na forma como ostentam o tempo de amizade, da casa, dos sonhos de consumo, da serventia dos fiéis funcionários e na maneira com que se relacionam que marcam os limites da própria riqueza e mostram que tipo de rico são.

Nas minhas pesquisas com os ricos tradicionais brasileiros, era comum ouvi-los se referirem a qualquer coisa junto da expressão "desde sempre". Para roupa, "desde sempre tenho essa peça". Para objetos de casa, "desde sempre tenho esse móvel. Era de vovó". Para os amigos, "desde sempre conheço fulana". Para viagens, "desde sempre vou a Paris" e por aí vai. Para os empregados, "ela trabalha desde sempre aqui. É patrimônio" como se não soubesse da abolição.

É na marcação de um tempo atemporal e no apagamento das origens que os ricos brasileiros inventam a própria diferença e, contra quaisquer questionamentos, avisam de pronto: somos ricos desde sempre.

A Fazenda Boa Vista, assim como outros condomínios para milionários de São Paulo, é craque em construir uma paisagem mítica que permite aos moradores e visitantes o contato com aquilo que imaginam ser ideal de ricos. É entre o que se vê e o que se sente nesses lugares que os frequentadores têm a chance de experimentar o sonho de uma riqueza imaginária, congelada no tempo, restrita a quem pode.

O condomínio traduz o desejo de ser rico em paisagem. Chamo aqui a atenção para dois detalhes simples: o controle milimétrico sobre o jardim e sobre a velocidade dos carros, além do silêncio.

Ao entrar na Fazenda, a segurança coloca um enorme cartão vermelho sobre o para-brisa dos visitantes. O aviso informa sobre a presença de radares de velocidade espalhados pelas ruelas. Caso alguém ultrapasse os 30 km/h, será multado em quase 2 mil reais.

Com isso, dentro dos muros, a sensação é de que o tempo não passa. Nem para as pessoas, nem para as plantas. O jardim de Maria João D'Orey, paisagista de mansões nababescas, posicionou as plantas de tal forma que parece que os bosques mais lembram uma pintura intacta do que uma obra viva.

Os gramados são milimetricamente aparados e emolduram as casas como se tivessem sido postas ali por extraterrestres. Sem qualquer vestígio de reforma ou intervenção humana.

Por fim, o apreço pelo silêncio. Ao atravessarem as alamedas da Fazenda Boa Vista, os carros de luxo, conhecidos pela potência dos motores, entram em modo silencioso. Não se ouve nada além da movimentação dos carrinhos de golfe, dos passarinhos e o caminhar delicado dos funcionários para que passem desapercebidos. A resposta está no papel constrangedor que o silêncio impõe ao comportamento dos de fora, aos diferentes.

Uma matéria recente da revista norte-americana The Atlantic explica por que os ricos amam o silêncio. Depois de comparar o barulho do Brooklyn quando era habitado por imigrantes e judeus à situação atual, após a gentrificação, a reportagem mostra como o bairro ficou mais silencioso depois da chegada dos ricos. Para além dos benefícios da diminuição da poluição sonora, fica claro que o silêncio, mais do que uma estética, impõe uma ética. Isto é, cobra dos indivíduos que se comportem de maneira adequada a não perturbarem a paz dos outros que estão ali e sabem o que é bom desde sempre (mesmo não seja verdade).

Na Fazenda Boa Vista, os funcionários, os animais selvagens, as obras das novas mansões, o sacolejar dos caminhões e até mesmo o vento vão de um lado a outro com uma calma silenciosa e lembram que há um jeito certo de se comportar, e qualquer distúrbio será rapidamente percebido.

Próximo da saída, perto de voltar à realidade, percebo um casal de jovens de bicicleta, apaixonados, gritando juras de amor. Um dos segurança mandou:

- Ou é do hotel ou é casa alugada. Tem como controlar isso aí, viu?

Ele meteu essa? Diria Casimiro abismado.

É no controle que se produz tanta diferença.

É assim desde sempre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL