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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Nós contra eles' e o 'tempo da política': após eleição, é hora de união

Ricardo Stuckert e Isac Nóbrega/PR
Imagem: Ricardo Stuckert e Isac Nóbrega/PR

Colunista do UOL

30/09/2022 04h01

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Morre um anjo no paraíso dos querubins toda vez que um analista culpa um político por acirrar a polarização em tempos de eleições.

Vira e mexe, a cantilena volta à mesa. Mudam-se as peças, segue a estrutura. Ora Lula é o responsável pela separação do Brasil entre "nós" e "eles"; ora é Bolsonaro o culpado.

Credito a fixação dos especialistas ao excesso de espaço reservado a discutir os sacolejos de um processo eleitoral morno, sem graça, no qual mais de 80% dos eleitores já estão decididos sobre o próprio voto. Desde 1989, nunca tivemos uma eleição presidencial com tantos lugares de fala, nas mídias tradicionais e digitais, sem termos o que falar. Há mais arena do que debate, há mais cacique do que índio, há mais comentarista do que projeto político, candidato ou partido. O resultado é tedioso e a saída é repetir a si mesmo ad infinittum.

Foi assim que os males da polarização voltaram à baila. Agora, são capazes de explicar qualquer um dos problemas nacionais. Da corrupção dos anos progressistas ao crescimento da direita raivosa, passando pela fome, pelo auxílio emergencial, até chegar à disputa pela venda de tolhas na avenida Paulista.

No entanto, é um erro atribuir à polarização o papel de grande fonte de todo mal e sofrimento no Brasil. Esse é um fenômeno global, comum a qualquer processo eleitoral nas democracias modernas. Seja em Araraquara, em Atenas ou em Paris. É do tempo da política. É a política.

Moacir Palmeira e Beatriz Heredia, antropólogos com larga experiência em disputas eleitorais, nos lembram que "o tempo da política" é mais do que uma expressão rotineira, comum na boca do povo. Trata-se uma categoria nativa. Algo repetido com frequência por aí, mas com capacidade de revelar muito mais do que apenas o significado das palavras. As categorias nativas deixam clara a maneira como nós pensamos e classificamos o mundo. E, quando usadas, têm o poder de marcar diferenças, de expressar valores, revelar o que está em jogo e o que podemos esperar uns dos outros.

No "tempo da política", espera-se uma cisão no tecido social e uma completa reorganização das relações, de maneira que os projetos políticos se materializem na paisagem, nos encontros e nas pessoas. É nesse intervalo temporal que nos dividimos, nos aglutinamos em novos formatos, colocamos bandeiras ou toalhas temáticas nas janelas, vestimos as cores dos políticos e assumimos identidades coletivas, misturadas a valores partidários. É quando não se fala de política como um domínio ou uma esfera, mas se faz política.

Nessas horas, é comum que as preferências se imponham sobre as relações familiares ou que um abismo surja entre velhos amigos. Por semanas, nos afastamos da tradicional rotina de encontros em nome de outros círculos de amizade ou parentesco que nos parecem ter mais sentido no hoje.

Esses são momentos contraditórios por si só. Afinal, se as eleições são um convite para que a nação (o todo) pense sobre quais rumos deseja seguir, para dar cabo desse objetivo somos obrigados a nos dividir, nos opor, rivalizar, disputar e romper com os nossos.

Para que a fratura não fuja do controle, é preciso estarmos atentos a dois elementos fundamentais: de um lado, a presença de líderes capazes dar fim ao tempo da política e reunir a sociedade em torno do projeto vencedor; do outro, a percepção compartilhada de que, na política, debatemos ideias, não abatemos pessoas.

O primeiro ponto é importante. O tempo da política precisa ser um intervalo temporal com começo, meio e fim. Caso contrário, coloca-se em risco a sociedade. Se são os políticos, junto dos marqueteiros e da militância, os responsáveis por romperem o tecido social em nome da reorganização necessária para o pleito eleitoral, devem ser eles também os líderes no processo de unificação social.

Cabe aos eleitos e aos perdedores a aceitação dos resultados das urnas, a compreensão do recado do eleitorado e a habilidade de ocupar o lugar político conferido pelo pleito (situação ou oposição), de forma que, de alguma maneira, todos se sintam parte da nação.

Aqui, reside um dos graves problemas da catástrofe brasileira. Desde 2014, a inabilidade política de Dilma Rousseff, além da contestação dos resultados eleitorais feira por Aécio Neves (PSDB) e o maremoto promovido pela "República de Curitiba", criaram um clima de instabilidade gigantesco. O Brasil que se fragmentou para o pleito não foi capaz de se unir em torno de um projeto. Desde então, seguimos separados. Ou odiando os desmandos da direita idiotizada de Bolsonaro, ou içados pelo estímulo raivoso do líder "imbrochável".

A retomada da nação enquanto uma comunidade imaginada só é possível se tivermos líderes com capacidade de tirar as coisas do lugar antes das eleições — e que tenham igual habilidade de recolocá-las nos devidos lugares, ao fim da disputa. Nações partidas ficam estagnadas; daí temos a sensação que o tempo não passa.

Há também outro aspecto importante à política: esse é um território do debate de ideias, não do abate de pessoas. Desde os gregos, a política sempre foi o lugar no qual os indivíduos se reuniam, expunham suas visões de mundo distintas e se organizavam para chegar a um consenso, sem precisar lançar mão de socos e pontapés. É onde, apesar das divergências pessoais, nos damos conta de que há algo maior que nos une e nos impede de romper com os outros para todo o sempre.

Ou, nas palavras de Ailton Krenak, filósofo e pensador indígena, a política é o ato entre um bofetão e um argumento. É aquele lugar no qual, diante de uma diferença abissal, damo-nos conta de que precisamos desses mesmos outros para viver. Com isso, em vez de lançarmos mão da violência que nos separaria definitivamente, somos obrigados a discutir, argumentar, refletir e construir algo juntos. Só é possível fazer política com projeto e ideias. Caso contrário, só restam as bofetadas.

O processo de digitalização do debate, junto a uma "estetização" rasa, têm feito as ideias evaporarem. Reduzir a discussão sobre o futuro do país a tuítes lacradores, dedinhos para cima, para esquerda ou para direita e cores de camiseta, faz com que deturpemos o sentido do fazer política.

O problema do momento brasileiro não é o clima de Fla x Flu: o dilema está no fato de muitos de nós termos clareza de que estamos divididos, mas não sabemos em nome de quê, sem estarmos certos de que o vencedor será capaz de nos unir novamente.

Oxalá isso aconteça. Se não, só nos restará tiro, porrada e bomba.