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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carnaval bagunça desejo das elites de viver como numa sala VIP de aeroporto

Camarote do Desfile das Campeãs de São Paulo, em 2022 - Mariana Pekin/UOL
Camarote do Desfile das Campeãs de São Paulo, em 2022 Imagem: Mariana Pekin/UOL

Colunista do UOL

19/02/2023 04h00

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Às vésperas do Carnaval de 2019, me enfiei num voo para Buenos Aires para fugir da folia. Não tinha clima. O ar era pesado, os encontros tensos e a vibe seguia ruim diante da promessa do apocalipse prometido por Jair Bolsonaro e sua trupe de zumbis.

Como acontece todos os anos, no aeroporto de Guarulhos (SP), famílias endinheiradas se amontoavam nas salinhas VIP de cartão de crédito. Mais de 60 anos depois da composição de Janet de Almeida, as madames seguem acreditando que a raça não melhora por causa do samba, e que a persistência dos festejos populares é sinal claro da falha civilizatória da nação. Pra que discutir com madame?

O espaço estava lotado. Entre garrafas de vinho quente e salgadinhos oferecidos como ração, os ricos se entretinham na pré-viagem de olho no celular e no roteiro no destino. Até que uma dondoca olhou para outra e a magia aconteceu. Elas se reconheceram. Meu Deus do céu, eu não acredito. Quem imaginaria te encontrar aqui, no aeroporto? Esse mundo é muito pequeno, mesmo, gritou no meio do salão.

O filho de uma delas, com não mais de 9 anos e cara de herdeiro de escola bilíngue, virou um daqueles diabinhos de desenho animado e mandou; "Mãe, não é o mundo que é pequeno. A desigualdade social é que é grande". Torta de climão. A mãe se apressou em dar um puxão no braço no menino e prosseguiu na conversa como se não tivesse ouvido nada.

Suspeito de que andam ensinando sociologia alemã às crianças milionárias nas escolas de São Paulo.

Georg Simmel (1858-1918), pensador alemão, lembra que, com o esvaziamento dos símbolos de nobreza e dos marcadores de diferença comum nos reinados de outrora, os nobres de hoje precisam se esforçar para provar quem são. Nesse jogo, eles se valem de duas estratégias. Primeiro, fazem o que for possível para se afastar das massas, se escondem nas altas rodas e se esforçam para proibir a entrada dos mortais nos círculos. Mas também trabalham duro para se aproximar, construir vínculos, viver próximo daqueles que consideram nobres como eles.

As salas VIP de aeroporto ajudam na operação da diferença, do mesmo jeito que os Carnavais atrapalham.

O desconforto das elites brasileiras com o Carnaval passa longe do horror à música, à confusão ou à afronta aos bons costumes. Ela mora numa radical experiência de igualdade, do fim temporário das hierarquias e da inversão dos papéis cotidianos.

O duro de aceitar no Carnaval é gente pobre virar rei na Sapucaí, ver de perto trabalhadores pulando em massa na pipoca dos trios de Salvador ou se divertindo, lado a lado, com a empregada doméstica, com o porteiro e com o garçom nos blocos do Recife. Tudo como se todo mundo fosse igual.

Para burlar a experiência de igualdade imposta pelo Carnaval, mas sair bem na fita, no meio do povo, nas fotos do Instagram, a elite brasileira encontrou uma solução. Não se enfia mais só nos camarotes para gente rica, mas dá um fígado por uma pulseirinha VIP dos maiores blocos de Carnaval ou um lugarzinho no trio das estrelas.

Anitta veio a público esta semana pedir aos amigos e conhecidos que parem de pedir lugar no trio elétrico. Não tem espaço para tanta gente no caminhão disfarçado de caixa de som. Lore Improta, mulher de Leo Santana, fez o mesmo. Ela pediu pelo fim da insistência de sua rede de amigos.

Eu consegui uma dessas pulseirinhas num bloco de São Paulo. O cortejo patrocinado por uma grande marca reuniu famosos, ex-BBBs, jornalistas, artistas e outras personalidades. Todos muito zelosos da marca de nobreza carregada no punho.

Ali, mesmo sem saber cantar nenhum dos sambas e com notória falta de traquejo e habilidade com o ritmo nacional, eles ostentavam um conjunto de símbolos para marcar a própria diferença na festa da igualdade. Apesar de juntos, estavam separados por uma corda, pela cerveja de graça do patrocinador, pelos banheiros mais limpos do que as fétidas cabines químicas, por mais espaço para sambar e pelos encontros entre amigos.

Um jornalista famoso encontrou um consultor de tecnologia e fez cara de espanto. Meus Deus, que surpresa você por aqui! O executivo da empresa patrocinadora encontrou a influencer da marca e se chocou. Que surpresa! O produtor musical encontrou um cantor. Que surpresa! Um esquerdomacho acenou para o político progressista. Que surpresa!

Nenhuma surpresa. A dificuldade da elite brasileira de lidar com a igualdade inventa jabuticabas mil.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL