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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Feita para brancos dormirem bem, ecologia do século 20 precisa de revisão

O escritor Malcom Ferdinand - Bénédicte Roscot/Divulgação
O escritor Malcom Ferdinand Imagem: Bénédicte Roscot/Divulgação

Colunista do UOL

15/03/2023 04h00

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Pisei na periferia da Oaxaca de Juárez, no México, com gana de entender os hábitos e a visão de mundo dos jovens da geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) na América Latina. Fazia um calor de fritar os miolos no casebre de Joselina, uma jovem de origem indígena, naquele julho de 2022.

Aproveitei a sensação infernal para quebrar o gelo e esboçar uma conversa sobre os impactos da quantidade de carbono na atmosfera e a promessa de apocalipse ambiental. Sem titubear, Joselina mandou:

- Aquecimento global? E eu com isso?

Foi um soco. Comecei o papo certo de que uma cadeia de "ismos" (neoliberalismo, pragmatismo, niilismo), comuns aos nossos tempos, já tinha cruzado as fronteiras e invadido o interior do país. Mas ela completou:

- Descobri que um único voo de Londres a Nova York consome 3 metros de calota polar. Eu nunca saí do meu bairro. Nunca tive dinheiro para andar de avião na vida. O que que eu tenho a ver com isso?

Outro soco.

Lembrei dessa cena enquanto lia "Uma Ecologia Decolonial", de Malcom Ferdinand, publicado recentemente pela editora Ubu. O autor, nascido na Martinica, é pesquisador do "Centre National de la Recherche Scientifique" (Centro Nacional de Pesquisa Científica, maior órgão público de pesquisa na França) e se vale do seu passado como engenheiro ambiental e do doutorado em filosofia e ciência política para questionar as fronteiras entre natureza e cultura, meio ambiente, relações de poder e de um ideal de "Homem universal" criado pela modernidade — ainda base fundamental nos debates promovidos pelos ambientalistas (em geral, todos brancos).

As discussões sobre a pressão do capitalismo sobre os recursos ambientais e a ideia de que nossos sonhos de consumo nos levarão a uma bancarrota cresceu a partir da segunda metade do século 20. É só depois de 200 anos da primeira Revolução Industrial que os agentes públicos decidem criar órgãos internacionais, fóruns de debate e organismos de controle para a brecar o avanço e pensar em soluções para o plano. E, logo seguida, tenta-se individualizar a questão ambiental, colocando sobre o colo dos consumidores a solução dos problemas estruturais do sistema econômico.

É nessa onda que surge que uma esquerda cirandeira, branca, de classe média-alta, colonizada ou colonizadora, farta das benesses da sociedade de consumo, mas cheia de vontade de se mobilizar em ONGs e partidos de todos os tons de verde. E saem por aí com sandálias de couro vegano, colar de semente e bicicleta elétrica, com os cabelos ao vento tratados com cosméticos naturais de primeira linha, crentes de que os problemas estruturais do capitalismo podem ser facilmente resolvidos por uma segunda-feira sem carne; terça sem carro; quarta sem avião; quinta sem celular e com a sexta sem internet. Não funcionou até agora e não tem chances de fncionar. Tem saída? Ferdinand aponta caminhos.

Sentamos em São Paulo, na última sexta-feira (10), para um bate-papo sobre o seu pensamento e seu livro, ganhador do renomado prêmio literário da Fondation de l'Écologie Politique em 2019. Jovem, de jeitão leve, mas certo da força política de suas ideias, o pesquisador propõe uma virada radical no paradigma do pensamento ambiental a partir do mundo caribenho. Reforça que "as destruições ambientais não atingem a todos da mesma maneira, tampouco apagam as destruições sociais e políticas já em curso".

Por conta disso, é preciso pensar a crise ambiental a partir do porão dos navios negreiros. Isto é, deixando de lado as teorias de ecologistas incapazes de pensar o legado do colonialismo e da escravidão e, do mesmo modo, chamando os movimentos sociais e antirracistas a não negligenciarem a questão animal e ambiental. E assim, fazendo uma ecologia decolonial.

A resposta de Joselina é o reflexo de como uma ecologia que não seja decolonial não engaja, não mobiliza e não resolverá os problemas do planeta. Seguindo os passos de Malcom Ferdinand, é preciso entender que o tal do "ponto de "não-retorno" é ambiental, mas também é social. Ou inserimos outras ontologias, outros Homens, outras formas de viver na equação, ou perderemos todos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL