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Trombadas

As duas canoas de Luiz

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

03/06/2021 04h01

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Ser sozinho no mundo traz uns problemas meio malucos. Tipo, as pessoas não acreditam. Você conta, explica, jura por Deus, diz "olha, sou só eu mesmo", e elas acham que é mentira. Outro dia fui abrir uma conta nova no banco e a gerente pediu nome e telefone de um parente próximo, "para o caso de necessidade". Não tenho, moça. Pai, mãe, mulher, filhos, primos, tios, sobrinhos. Nadinha. Zero. Nem cunhado. Ela achou que eu escondia alguma coisa, ou era fugitivo da polícia, ou, no mínimo, sentia vergonha da família. Como assim você não tem ninguém? Pois é. Não tenho.

Desde 2018 sou eu comigo mesmo. Minha esposa Adriana morreu em janeiro, de câncer, e meu pai em dezembro, no dia de Natal, de idade. Emendei um luto no outro e mal tive tempo de chorar. Na vez do meu pai, quando precisei repetir aquela burocracia dolorosa de necrotério, funerária, cemitério, foi aí que me dei conta: bom, Luiz, agora acabou, só sobrou você. Então larguei o emprego que eu tinha numa importadora e vim cuidar da barbearia do velho, o Salão Genial, que está assim desse jeitinho desde que ele comprou, em 1979. Os móveis, os ventiladores, as latas de talco, a caixa registradora, as revistas Manchete, tudo como sempre foi. Eu administro e o seu Antonio trabalha.

Passo o dia todo aqui. Às vezes penso que eu sou esse salão, que ele é uma metáfora de mim. Porque eu gosto das permanências. Sinto fascínio pelas antiguidades, as coisas que atravessam o tempo. Minha bicicleta é uma Caloi 10 e até o ano passado eu tinha um Escort XR3 e uma TV de tubo. Só que a vida tem me atormentado pedindo mudanças que não tenho força pra realizar, embora deseje demais. Pra mudar eu precisaria fechar a barbearia. Mas como? Meu pai foi feliz nesse lugar. O pouco que a gente tem saiu daqui. Fiz 46 anos e venho aqui desde os cinco. É muito sentimento.

Como você já deve ter notado, tem muito "mas" na minha vida. O mas, o porém, o entretanto, o todavia? Ai, as minhas desgraças. Bem que eu gostaria de ser mais animal, instintivo, agir. Mas raciocino demais e acabo não fazendo nada. Quando faço, é um alívio tão grande que você não imagina. Lá em casa tinha uma parede separando a copa da cozinha que eu odiava. Passei anos odiando. Num sábado da quarentena me deu uma coisa, comprei uma marreta e botei abaixo. Sozinho. O mais difícil foi fazer o primeiro buraco, depois ficou fácil. Tirei 23 sacos de entulho, um peso danado. À noite, ainda suado e coberto de poeira, pensei: se eu achava tão ruim, se me incomodava tanto, por que não me livrei disso antes? Sei lá por quê.

TAB Trombadas - José Luiz Borges da Silva, o dono da barbearia - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Acho que sou assim por ser filho único de pais muito mais velhos. Eles se casaram em Portugal, contra a vontade da família de minha mãe, porque meu pai era pobre. Vieram pro Brasil e nunca mais tiveram contato com os parentes. Quando eu nasci, ela tinha 45 anos e ele, 50. Eu morria de medo. Todo o tempo morria de medo. De quê?! Ora, de ser sempre o culpado por tudo, né? Muita expectativa, muita cobrança e nenhum irmão, nenhum primo pra dividir a carga dos sacos de entulho. Pra você ver que solidão não é bem o mesmo que ser sozinho. Solidão tem mais a ver com essa dificuldade de fazer escolhas. É angustiante. Eu me sinto como se vivesse com um pé em cada canoa: uma amarrada no porto e a outra solta no mar, me puxando uma para cada lado. Seu eu pudesse, pularia pra canoa que está desamarrada. Seria super ousado da minha parte! Mas até quando será que eu aguento sem rasgar?

Aos 17 anos me sentia assim também. Um incômodo me acompanhava. Mais que incômodo. Era uma vergonha, um sofrimento por não conhecer o mar. Lá fui eu querer ser super ousado pela primeira vez: peguei o fusca azul-calcinha do meu meu pai escondido e dirigi sozinho até Santos. Pus os pés na água, olhei a imensidão por dez minutos e voltei pra São Paulo sem sequer tomar um picolé na praia. Lembro da minha euforia na estrada. Uma sensação muito boa. Mas, assim que abri a porta de casa, meu pai me pegou. Eu até pedi desculpas, e eram desculpas tão sinceras, porque de fato eu tinha me arrependido, mas não adiantou. Me bateu, disse que tinha perdido a confiança em mim e outras coisas piores. Hoje lembro mais da dor das palavras dele do que dos tapas.

Não é algo de que me orgulho, não. Ele tinha razão. Mas eu também tinha, porque eu quis me livrar de um sentimento que me fazia mal. Isso tem valor, não tem? Ninguém pode julgar o sofrimento do outro. É individual: cada um sabe como sofre. E, no fim das contas, o desejo de acabar com um sofrimento é o que faz a humanidade avançar. Eu cometi toda a presepada de Santos por causa disso. Vontade de mudar. Mas não compensou. Claro que eu ainda sinto essa vontade de vez em quando. Mas digo pra mim mesmo: deixa pra lá, não compensa. Pesado viver assim, não é? Mas a gente se acostuma.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Acho que é por isso que tenho medo do dia em que não precisar mais vir ao salão. Pra lidar com isso talvez a mudança tenha de ser drástica, total. Tipo juntar as coisas e ir morar em Florianópolis. Nunca estive lá, mas meu amigo João foi e está adorando. Como admiro o João. Ele trabalhava em Jaguariúna num emprego que não gostava. Um dia pediu demissão, chamou um caminhão, jogou tudo dentro, até os gatos, e se mandou. Fico besta de ver como as pessoas conseguem se resolver dessa maneira tão simples. Eu nem gato tenho, só tenho uma jiboia, a planta, que molho quando ela fica amarela. Engraçado tudo isso. Me dou conta agora, enquanto conversamos. Meus amigos que eram porras-loucas estão todos com mulher, filhos e mensalidade de escola pra pagar. Eu, que sempre quis aquela vidinha rotineira, envelhecer ao lado da Adriana, netos e tal, estou aqui com essa liberdade toda e não sei o que fazer com ela.

Ano retrasado consegui a cidadania portuguesa. Olho todos os dias pro meu passaporte sobre o aparador da sala. Tenho pistas de uns familiares distantes na região da Serra da Estrela e queria ir lá. Nem que fosse só para encontrar um primo de segundo, terceiro grau, e ele bater a porta na minha cara: "Não há nada cá pra tu". Pelo menos diminuiria essa sensação de ser sozinho. Porque tem outra coisa: ser sozinho exige esforço, cansa demais. Eu me policio o tempo todo pra não largar mão de mim, já que não devo satisfação a ninguém. É tentador não lavar a louça, não arrumar a cama, usar o tênis furado, a camisa sem passar. Não deixo isso acontecer. Acordo e ligo o rádio ou a televisão. Chego em casa, a mesma coisa. Não ouço nem vejo nada, mas os ruídos me fazem companhia e me acalmam. Já sou sozinho, se eu mesmo me abandonar, aí acabou.

Enfim, eu acho que deveria aproveitar mais o mundo enquanto ainda vejo graça nas coisas. Quem sabe o ano que vem o destino me ajuda.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

José Luiz Borges da Silva, 46 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.