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Trombadas

As rimas de Creed

TAB Trombadas - Creed - Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Creed
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

04/11/2021 04h01

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Demorô.

Irmão, o primeiro rap que eu fiz eu tinha 10 anos de idade. Era hora do almoço. Pai, mãe e os cinco filhos em nossa casinha de madeira em Barcarena, no Pará. Em cima da mesa só o saco de farinha e 30 centavos. Era tudo que a gente tinha. Minha mãe vira pra mim:

— Henrique, pega as moedas, vai até o mercado e compra três ovos.

Eu fui e, na caminhada, sentindo vergonha, eu me perguntava "Porra, isso nunca vai melhorar?". Voltei com os ovos. Minha mãe quebra o primeiro na panela. Pum! Quebra o segundo. Tei! Quebra o terceiro: putaquepariu, podre. Perdemos o almoço. Ela deu um suspiro, olhou triste pra nós, as cinco crianças com fome ali em volta dela, perto do fogãozinho, e fingiu que tava tudo bem:

— Vamos comer manga com farinha de novo?

Foi a primeira vez que eu senti ódio. "Me dá aqui essa parada que eu vou lá reclamar." Chamei o cara do mercado e mandei: "Olhaí, mano, ovo podre". Ele pediu desculpas e disse que trocava. Peguei três ovos novos, mas não joguei fora o saco com a gororoba podre. Os três ovos novos estavam bons. Mesmo assim retornei no mercado com o ruim da primeira vez: "Aí, mano, podre também". Fui indo, três em três. Só parei quando completei uma dúzia e a gente pôde almoçar mais ou menos direito. Esse foi meu primeiro rap. Sem letra, sem escrita, sem rima, sem batida. Só imaginação e revolta.

Eu era um moleque tímido, retraído. Gostava de ficar desenhando, arrumando as coisas pra minha mãe. Lavava louça pra ela, varria. Mas em casa diziam que eu era esquisito, doido, retardado. E me batiam também. Por tudo e por nada. Uma hora porque tinha sumido uma chave de fenda do meu pai, outra hora porque eu liguei um fio em duas tomadas e quase incendiei a casa, coisa de criança, né, mano? Então eu acho que usava essa parada de imaginar, sonhar, pra sair dali, viver outra vida, sei lá, uma vida inventada, porque a nossa vida de verdade era muito ferrada.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Nasci em Belém e a gente se mudou pra Barcarena quando eu tinha 7 anos. Lembro que meu primeiro dia na escola lá foi um desastre. Eu era o novato e, lógico, o garoto popularzão começou a me zoar. Fui logo ofendendo a mãe dele e ele veio pra cima. Lardislan, o nome do maluco, vê se pode. Lardislan. Ele só me deu na cara. Pá! Pein! Tei!. Pensa numa surra. Ali eu aprendi uma lição: quando tu chega num lugar, tem que saber entrar e sair. Porque essa parada de acolher, respeitar, estender a mão, vou te falar: no Brasil tem uns pico onde as regras são outras, malandro.

Mas tinha um lugar onde eu me sentia bem: o sítio dos meus avós, que ficava numa localidade mais pro interior chamada Cabresto. Engraçado ter esse nome, né, irmão? Em Cabresto eu era liberto. Vô Raidó e vó Neca. A gente fazia farinha do modo tradicional, capinava, se banhava no igarapé de água gelada e preta igual café, árvores imensas, imensas, mano. Acordava cedo, cansava o corpo e ia dormir sonhando que afeto podia dar rima com felicidade. Porque meu avô, um negão gigante, forte demais, me abraçava, me elogiava, e minha avó fazia bolo pra mim.

Nas férias da escola, o sítio ficava cheio. Tios, primos, todo mundo ia pra lá. A gente se reunia pra contar histórias, casos, mentiras, ouvir Reginaldo Rossi, Amado Batista, até hoje eu adoro esses caras. Mas ao mesmo tempo, no meio dessa alegria toda, eu iniciei na bebida. Puxava um copo escondido aqui, uma garrafa ali, tomava todos os restinhos. Era mais pela bagunça de fazer um negócio proibido, só que virou um problemaço. Eu devia ter uns 10, 11 anos.

Com 14 anos eu era bem esquisito, duas pessoas diferentes: a do sítio e a de casa. Eu acumulava muito sentimento dentro de mim. Curtia pintar, copiava figuras de super-heróis das revistas e às vezes ia todo animado mostrar pro meu pai e ele:

— Você é doido, moleque? Não bate bem, não?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu me sentia sozinho pra caralho: "Porra, só faço bagulho errado mesmo, eles tão certos, eu sou um bosta". Fui me tornando um moleque frio que nem aquele extintor de incêndio ali, tá ligado? Até que um dia voltei decidido do sítio e anunciei:

— Aquele Henrique que vocês conheciam morreu. Cabou.

E, realmente, pra tu ver como a palavra tem poder, a partir daquele momento eu fui afundando mais e mais. Bebia, brigava e comecei a praticar pequenos furtos. No mercado, na papelaria, na farmácia. Eu era bom nessa parada: catava as coisas e ninguém se ligava. Aí umas pessoas reconheceram meu talento e começaram a me valorizar: "Porra, moleque, tu é foda mesmo". Passei a tomar residência também, mais arriscado. Entrava e saía com os bagulho à luz do dia. Os caras só me botando pra cima, "tu é bom demais nisso, moleque!", e eu fui me sentindo abraçado, mano. Tipo o abraço do meu avô no sítio. Pensei assim: "Isso aqui é a chama da minha criatividade, eu vou me dar essa liberdade que vocês me negam. Fiquem aí achando que eu sou retardado, que eu sou otário. Vocês nem imaginam o que eu sou capaz de fazer".

Só que eles imaginavam sim. Um dia a vó Neca veio pedir pros meus pais me deixarem passar um ano com ela e o vô Raidó no sítio. Eu fui. Dessa vez comecei a trampar com um búfalo que ninguém dava conta. Bicho feroz, um monstro, violento. E eu consegui domesticar ele. Os dois animais se entenderam naquele instante do universo, tu tá ligado? Eu subia na carroça e ia com ele no meio da floresta buscar tora de madeira. Horas e horas trocando ideia com aquele búfalo:

— Irmãozinho, eu não vou ser nada na vida. O que vai acontecer comigo? Olha pra minha família. Quem ali você acha que conseguiu o que sonhou?

Aí eu imaginava o búfalo respondendo:

— Eles trabalham, almoçam, jantam. Não tão morrendo de fome.

— Mas, porra, monstrão, isso não é sonho. Será que sonhar é errado? Então por que eu sonho tanto?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Chegou num ponto que o búfalo me deixou montar no lombo dele. Ficamos amigos. Ele amansou. Eu não. Continuava bebendo, fumando, me metendo em briga, vivia arrebentado. Quando voltei pra Barcarena comecei uma subida alucinada pra baixo: me envolvi com tráfico. Montei um esqueminha, tinha uns moleques trabalhando pra mim e assistia DVD pirata pra aprender o business. "Conexão Jamaica", "Cidade de Deus", "O Gângster" — nesse aí o Denzel Washington fala que a gente deve conseguir respeito pela admiração, não pela intimidação. Então eu fiquei bom nisso também. Eu era o cara que honrava a palavra, perdoava dívida, não deixava ninguém na mão. Mas essa parada nunca é tranquila, né véi? Tráfico é disputa, vingança, morte. Eu traficava, consumia e brigava. Atingi um nível de violência assustador, nem gosto de lembrar. Tudo piorava todos os dias. Meus tios, primos e vizinhos atravessavam a rua quando me viam. Os rivais apedrejaram a casa dos meus pais duas vezes. Mas eu não tava nem aí, porque tinha botado uma parada na minha cabeça: agora sou só eu e o mundo; não tem ninguém por mim nem pra mim, foda-se.

Até que apareceu alguém pra mim e por mim, né, mano? A Gabi. Ela tinha 12 anos e eu, 16. Nossa, sei lá, um sorriso muito bonito, um coração muito puro, fluía uma luz dela, sabe?, um espírito diferente. Eu via nela a inocência que eu tive um dia, e achava tudo tão bom que não queria ficar longe de alguém assim. Começamos a namorar. Ela soube dos meus esquemas e não aceitou, claro. Ela dizia pra mim:

— Henrique, você é melhor que isso. Tá desperdiçando a sua vida.

O fato de a Gabi ver esperança em mim me deu esperança também. Com 14 anos ela ficou grávida. Eu só com experiência de rua, sem trabalho, sem salário, sem um ofício e me bateu um desespero: "Porra, agora não dá mais pra ser eu contra rapa. Se eu quiser continuar com a Gabi vou ter que abraçar o mundo, com os defeitos dele e os meus, não tem outro jeito".

Nessa mesma época a minha mãe e a minha irmã mais velha tinham começado a ir na igreja. Levavam umas roupas minhas pra fazer não sei o quê. Acho que pra arrancar meus demônios. Umas pessoas vinham em casa e queriam conversar comigo. Eu não dava papo. Nem sabia conversar, me expressar. Eu tinha era raiva, tava sempre ligado no 220. Tirando a Gabi, qualquer abordagem era falsidade pra mim. O crime tinha me ensinado a não confiar em ninguém. Mas um dia eu cheguei em casa, tava rolando reunião da igreja. Fui passar batido pela sala e um crioulo entrou na minha frente. Ele olhou nos meus olhos, me abraçou e falou assim:

— Eu te amo, viu, mano.

Pastor Orlando. Nunca vou esquecer. Esse gesto dele mudou a minha vida. Não foi um salmo, não foi um versículo, nada disso. Foi o gesto. Aos 18 anos de idade eu ouvi pela primeira vez alguém dizendo que me amava. Junto com isso aconteceu um fato que me tirou da rua de vez. Um dia chegou na nossa boca o gerente de uma boca rival. Chamava Santos. Bandido das antigas, maluco feroz o Santos. Me chamou de canto:

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— Ó, garoto, eu nem devia estar aqui. Por isso vou falar só uma vez e não vou repetir: hoje à noite a gente vai descer com todo mundo pra te quebrar aqui na esquina. A ordem é derrubar todo mundo. No seu lugar eu dava um tempo da rua hoje à noite. Você acredita se quiser.

Eu acreditei. Eu e meus moleques ficamos observando de longe e eles foram mesmo. Até hoje fico pensando no que levou o Santos a fazer aquilo. Será que ele tinha um filho da minha idade e teve pena de mim? Será que já tinha matado um jovem como eu e sentia remorso? Será que um dia um bandido velho tinha dado essa letra e salvado a vida dele também? Não sei. Mas pra resumir, que a gente do rap é ruim de encurtar as histórias, né mano?, já peço desculpas aí pro seus leitores, então, pra resumir, eu saí da rua e entrei na igreja. Um dia, num culto, veio um cara que subiu no púlpito e começou a rimar. "Caraio! Rap na igreja? Pode isso? Não é pecado não?" Eu fiquei maluco.

Voltei pra casa e escrevi com febre, tá ligado? Parece que tinha um búfalo brabo dentro de mim e eu ia despejando ele no caderno. Passei a escrever em todo lugar. Em casa, na rua, na igreja, na escola e no trampo numa fábrica que meu pai arrumou pra mim. Pois é. Eu tinha voltado a estudar e virado um operário, tipo Eminem. No começo eu escrevia rap gospel, tá ligado? Aí fui evoluindo, sentindo vontade de dizer outras paradas, gritar contra esse sistema que esmaga a gente, que acha normal uma família de sete pessoas, pai trabalhador, mãe trabalhadora e cinco crianças, ter só a porra de três ovos pra almoçar. Eu tinha encontrado a minha estrada, mano. Meu sonho. Só que o pessoal da igreja não curtiu, achou que eu tava endemoninhado, queria meter a pata nas minhas rimas. Eu falava pra eles:

— Que é isso, irmão? Tu não pode cortar minhas palavras. Tá cortando a minha carne. Jesus não faria isso. Jesus me chama de mano, porra!

Se liga nessa, mano, é o seguinte: quando tu não tem nenhum rastro artístico na família, nem no entorno, e de repente uma parada forte assim brota no seu coração, porra, mano, tu tem que tratar com carinho. Deus fez isso por algum motivo. Eu nunca tinha escrito nada. Aí comecei a baixar base da internet e escrever em cima. De um dia pro outro. Então eu não posso permitir que me mandem gritar baixinho. Eu grito no volume que eu quiser, porque eu quero que até os surdos me ouçam.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então tô nessa caminhada aí. No começo do ano, depois de uma temporada no Vale do Paraíba, onde morei com meu irmão, eu vim pra São Paulo. Tentei carreira de vendedor de bala no metrô, mas durou só cinco estações: o guarda me pegou, levou tudo embora, me jogou na rua e acabou. Aí faço uns bicos de eletricista, de propagandista e cuido das minhas duas filhas, já que a Gabi tá com trampo de carteira assinada aqui no Centro. Participo de umas batalhas e vou mostrando minhas rimas. Um dia um camarada me ouviu e me deu de presente a produção de uma música minha. Entrei no estúdio pela primeira vez nada vida: era como o sítio do vô Raidó. Gravei "Fé na Caminhada", que tá nas plataformas digitais. Ouve lá, irmão, mostra pra família, pros camaradas, dá essa força. Procura por Creed 091, meu nome de guerra. Creed de "fé" e 091 com vários significados: é o DDD do Pará, minha terra; o zero é de onde eu venho, o nove porque não sou perfeito e o 1 simbolizando que agora eu tô em primeiro lugar.

Até tatuei "Fé na Caminhada" no peito, que é pra lembrar de tudo sempre que me olho no espelho. Eu já me perdoei, irmão, mas não quero esquecer. De nada. Não é só uma frase ou uma composição. É muito mais. Eu baseio tudo nisso aí. Quando eu olho, consigo ver que tô praticando o que eu acredito, não tô só falando da boca pra fora. Se eu acreditasse que a minha caminhada era ficar dentro da igreja ou de uma fábrica de segunda a sexta, a gente não tava trocando essa ideia aqui. Como é que eu não vou ter fé, mano? Tu me parou na rua pra ouvir a minha história, porra! Tu acha que foi à toa? Pra mim isso aí mostrou que a caminhada é essa mesmo: eu tenho que rimar, falar alto, pra tocar as pessoas e esburacar a matrix, tá ligado? Porque eles querem que a gente não pense, não sonhe, se contente em viver de migalhas, de manga com farinha. Caraio, mano, a gente é muito enganado. Mais do que isso. A gente é roubado, tratado como idiota, como lixo. E eu aprendi: se tu aceita que é lixo, acaba virando lixo mesmo. Pra mim não mais, irmão.

Falando nisso, na próxima vez que a gente se trombar, vou te dar um pouco de açaí verdadeiro, tu gosta de açaí? Esse que vocês tomam a R$ 30 o potinho aqui em São Paulo tem nada ver, não. Aliás, mano, por que vocês tomam açaí como vitamina? Lá no Pará a gente come com peixe, com charque, camarão, e depois deita na lajota fria pra dormir, se recuperar do tranco. Mas vou indo nessa, irmão. A gente se cruza aí. É nóis.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Cristyan Henrique Fagundes de Oliveira, 30 anos, o Creed 091

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.