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Trombadas

O irmão quase gêmeo de Mariana, ou a irmã quase gêmea de Raphael

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

13/01/2022 04h01

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-- Eu sou a Mariana.
-- E eu sou o Raphael.

-- A gente é irmão, mas se conheceu faz pouco tempo.
-- E agora não se larga. Eu vim até morar perto da Mari, no Belenzinho. Saí da Vila Guilherme e vim pra cá.

-- Teria sido tão bom se tivéssemos crescido juntos em vez de criados como filhos únicos.
-- Sim. Tantas coisas em comum, tanta coisa pra dividir. E agora dá pra dividir com alguém pela primeira vez na vida!

-- Isso, mães diferentes, o mesmo pai. A gente cresceu separado, um rolê cheio de coisas não ditas, de interdições, de "deixa como está". Mas quando a mãe do Rapha morreu, uma tia, irmã do nosso pai, colocou os quatro filhos dele em contato: eu, o Rapha e os dois mais velhos. Quatro anos depois, quando a minha morreu, a gente se aproximou de vez, porque eu precisei de alguém e o Rapha me amparou como só um irmão pode fazer. Desde então tem sido tudo muito doido. As descobertas, as coincidências, os desencontros, as aflições, as dúvidas, as alegrias. É bom ter um irmão. A gente nasceu no mesmo ano, 1987. O Rapha em março, eu em abril. São só 24 dias de diferença, acredita? Vai vendo a loucura.
-- Teoricamente, na época o nosso pai vivia com a minha mãe.

-- A minha dizia que conheceu ele no samba e, quando contou que estava grávida, ele disse "Xiii, você também?". Aí ela mandou o famoso "ou ela ou eu". Ela, no caso, era a mãe do Rapha. E ele, muito sabonete, desconversou. Então ela deixou uma ordem expressa na maternidade: se chegar um negão assim, assado, se dizendo pai da criança, eu não autorizo a entrada. É mentira dele. Não quero ele aqui.
-- Quando a gente se encontrou, anos atrás, já adultos, e foi conversando, desencavando momentos, montando o quebra-cabeça das nossas vidas, foi elaborando várias dessas coisas juntos. Coisas do dia a dia e coisas do espírito também. A gente descobriu, por exemplo, que a Mari ganhou de presente uma cama que tinha sido minha! E que sumiu da minha casa da noite por dia, sem mais nem menos!

TAB Trombadas - Raphael Brandão com a mãe, Roseli - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Raphael Brandão com a mãe, Roseli
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Mariana Molina com sua mãe, Tania - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Mariana Molina com sua mãe, Tania
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

-- É tão louco isso. A gente sempre esteve por perto, se esbarrando, né? Eu devia ter uns três ou quatro anos quando conheci o nosso pai. As lembranças são meio esparsas, mas uma cena é bem nítida pra mim: eu pequenininha no banco de trás do Fusca azul da minha mãe, aparece um homem negro, senta no banco do carona e ela diz, com um pouco de desprezo: "Mariana, esse aí é o seu pai".
-- Quando a Mari me contou isso, me veio um flash e eu quase infartei. Porque teve um dia na minha infância em que eu estava olhando pela janela do nosso apartamento e vi o nosso pai, lá embaixo, na rua, perto de um carro azul, conversando com uma mulher que não era a minha mãe e segurando no colo uma criança que não era eu. Isso me marcou muito! "O que o meu pai tá fazendo com outra criança no colo?!" Acho que nesse dia eu vi a Mariana pela primeira vez. Pouco tempo depois, ele brigou com a minha mãe, saiu de casa e levou todos os móveis embora, até a minha cama. Aí, vendo fotos nossas antigas, de quando éramos pequenos, concluímos que era a mesma cama da Mari. Ou seja, ele tirou de mim e deu pra ela.

TAB Trombadas - Mariana Molina e Raphael Brandão - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

-- E o lance do supermercado, Rapha? Como foi mesmo?
-- Essa eu sei de ouvir a minha mãe contar. Acho até que foi o motivo da separação deles. Um belo dia os dois foram ao supermercado e minha mãe estranhou que meu pai estivesse tão apressado. Ele, virginiano, imagina, comparava todos os preços, lia todos os rótulos, levava umas cinco horas pra fazer a compra do mês. Mas naquele dia, depois de cruzar no corredor com uma mulher loira empurrando um carrinho com uma menina preta sentada na cadeirinha, deu um siricutico nele e ele quis ir embora. Ficou angustiado, passou mal. A minha mãe, sagitário, né?, sacou na hora: "Aquela menina por acaso é sua filha?" Ela tinha uma sensibilidade impressionante, captava essas coisas assim, ó, puf!

-- Imagina o pavor dele? Hahaha. Essa memória pra mim se apagou, não lembro de nada, mas consigo imaginar o negão ficando branco, depois verde, gaguejando e querendo correr dali.
-- Esse episódio magoou tanto a minha mãe que a Mariana virou uma espécie de irmã proibida. Eu nunca via ninguém, mas minha mãe me falava que eu tinha dois irmãos mais velhos, do primeiro relacionamento do meu pai, e "a menina lá".

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

-- Do meu lado, o Raphael era "o irmão que não dá pra ter contato". Como a história envolvia traição, a coisa nunca ficou bem resolvida entre o nosso pai e nossas mães. Eu também sabia dos outros dois irmãos mais velhos, mas "o Raphael não dá pra ter contato, Mariana, esquece".
-- Outra coisa em comum que a gente descobriu junto foi a procura por esses irmãos mais velhos, o Fernando e o Leandro, né, Mari? Sem se conhecer, mal sabendo um da existência do outro, a gente fazia exatamente as mesmas coisas na esperança de encontrar eles.

-- Nossa, isso é tão marcante pra mim. Essa busca pelo Fernando e pelo Leandro dominou a minha infância e adolescência. É tão forte quanto a solidão de ser uma menina preta nascida e criada numa família só de brancos. Eu queria demais achar os meus irmãos. Um dia a minha mãe comentou que eles trabalhavam no McDonald's. Então, toda vez que eu ia num McDonald's, qualquer um, em qualquer bairro, até em outras cidades, eu ia cheia de esperança e euforia. Mal conseguia comer, na verdade. Eu ficava procurando por atendentes que se parecessem comigo. Encarava todo mundo, queria achar algum traço, uma expressão, um olhar, um cabelo crespo, um nariz largo. Lia os crachás pra ver se alguém se chamava Fernando ou Leandro, corria pra ver o quadro de funcionário do mês, sabe? Aí o Rapha me contou que fazia exatamente a mesma coisa.
-- Sim, fazia. Até nos banheiros eu entrava pra não deixar escapar nenhum funcionário sem averiguação. Hoje nos conhecemos todos, os quatro irmãos. Ano passado nos reunimos no almoço de 70 anos do nosso pai. Mas o apego maior ficou entre mim e a Mari. A gente tem mais coisas em comum. Eu também cresci numa família branca. As referências negras que eu tinha eram todas externas, não estavam em mim. Era o basquete, o rap, essas coisas. Fico pensando se a ausência do pai, inconscientemente, abafou a minha negritude. Eu sempre soube que era negro, claro. Mas não me ligava nos reflexos disso. A neura que a minha mãe tinha de que eu não saísse de casa sem o RG, por exemplo. "Manhê, vou na padaria buscar pão." Aí ela gritava de onde estivesse: "Tá levando o RG, Raphael?" ou "Não esquece do documento, meu filho". Pra mim era natural, só que com meus primos não era assim. Uma vez a gente estava na praia e veio um homem perguntar pra minha mãe: "O menino que está com a senhora é da excursão da Febem?" Ela ficou tão brava, e eu não conseguia entender, não processava esses acontecimentos.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Mariana Molina - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

-- Ô, Rapha, a coisa mais bonita e importante de a gente ter se encontrado foi poder resgatar a nossa ancestralidade, hein? Dar a devida importância pro fato de nosso pai ser preto e a gente também. Eu acho que elaborar melhor a minha negritude do seu lado tem sido muito bom, viu. Brigado, mano. Porque isso lá em casa foi até meio pesado. Um processo torto, difícil de contar e mais difícil ainda de entender. A minha mãe era cheia de piadas racistas comigo. "Ah, a Mariana não come chocolate ao leite porque tem medo de morder o dedo." Eu acho que tinha uma dose de revolta com o meu pai nisso. Não por ele ser negro, afinal, né?, mas por ele nunca ter sido um companheiro pra ela e um pai pra mim. Então eu sempre ouvia ela falando, eu do lado, "Ah, tinha que ser preto mesmo". Lembro que quando eu comprei meu primeiro carro ela foi categórica: "Presta atenção, Mariana. Se passar por blitz da polícia, abaixa o vidro, reduz o farol, acende a luz interna e passa devagar, bem devagar". Nossa, por que esse cuidado todo? Ela nunca me explicou, mas hoje eu sei que, se eu insistisse, ela diria "porque você é preta e é assim que as coisas são".
-- Ai, Mari, dá um abraço aqui. A gente já chorou tanto junto, né? Um choro a mais não faz mal.

-- Mas, Rapha, a gente precisa dizer que hoje em dia não culpa mais os nossos pais pelo que aconteceu e como aconteceu. Foi dolorido, às vezes ainda é, mas a fase da culpa passou, né? Não sei como é pra você, mas acho que eles fizeram o que deu, sei lá. Fizeram tudo errado, uma puta sacanagem com a gente, porra, deixar dois irmãos praticamente gêmeos crescerem separados, mas será que podiam ter feito melhor? Sei lá, viu. Eu prefiro focar no que veio depois que a gente se achou: a questão da consciência negra. Isso me pegou. Nela eu me encontrei. Ainda bem que a gente tá indo atrás a nossa ancestralidade, se interessando pela luta, pelo retorno ao que sempre foi nosso. Só por isso já valeu. E de certa forma a gente deve isso ao nosso pai. É o balanço que eu faço. O que você acha?
-- É, eu acho que você tem razão. Meus sentimentos são parecidos. Pra mim tudo fez sentido quando você me levou no Aparelha Luzia, lembra? Não sei se ele conhece, então vou explicar: o Aparelha Luzia é um bar, um centro cultural, um quilombo urbano, foi fundado pela deputada estadual Erica Malunguinho. Fica nos Campos Elíseos. Eu nunca tinha ouvido falar. Aí a Mari me levou lá. Eu estava com o meu ex-namorado e, quando entrei, senti uma coisa muito forte. Eu me senti em casa, como se estivesse me encontrando. Era tudo inédito e ao mesmo tempo tudo tão familiar. Nesse dia eu relaxei pela primeira vez na vida. Aquilo tudo me pertencia. Era meu. Era eu! Aí começou a tocar um ponto de Oxum, lembra, Mari?, a gente se abraçou, eu e a Mari, e ficou um tempão abraçado, sem dizer nada. Uma sensação boa de que as peças do quebra-cabeça tinham se encaixado. A procura tinha terminado e, ao mesmo tempo, me dei conta de como a minha irmã me fez falta a vida inteira. Não mais.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mariana Molina e Raphael Brandão, 34 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.