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Trombadas

O claro horizonte de Diego

TAB Trombadas - Diego de Miranda Santos - Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Diego de Miranda Santos
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

09/06/2022 04h01

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Fechô, bróder. Sem problema. Deixa eu terminar o suco e a gente senta lá dentro na galeria pra trocar ideia. Galeria Metrópole, né? Cara, eu curto demais esse lugar. Quando era moleque na Bahia e sonhava vir pra São Paulo, era isso aqui que eu imaginava. Meu nome é Diego, prazer. Uma galera me chama de Rabisco. Minha mãe, de Di. E um camarada, pra zoar com o cara do Capital Inicial, de Di Olho Preto. Mas falaí. Explica melhor essa parada de Trombadas. Tendi. Tá. Vamo nessa. O que tu quer saber?

Como é ser assim? Carai, véi. Ó, vou te dizer. Ser assim são várias coisas. Depende do dia. Ser assim, ter me tornado assim, sacou?, foi o que salvou a minha vida. Mas tem dia que ser assim é a mãe com o bebê no colo trocando de calçada pra não passar perto de você. Aí tem dia que é subir no ônibus, sentar e a pessoa ao lado se levantar na mesma hora e ficar o resto da viagem em pé, longe. E tem dia que é gente apontando o dedo na tua cara e te chamando de demônio. Te juro. Acontece direto. Hoje mais cedo mesmo, no metrô São Bento. Um pastor desses que pregam na rua, gritando, tá ligado? O cara me parou e foi logo derramando:

— Vem aqui, meu filho. Você vai ficar cego em breve. E sem enxergar o caminho do céu, só vai achar o do inferno. É isso que você quer?

— Ôxi!, e você é deus por acaso?, eu respondi. Quem vai pro inferno é você, que julga os outros desse jeito sem conhecer. O demônio tá nessas suas palavras, no seu julgamento, tá em você, não em mim. A minha carne pode te parecer suja, mas a minha alma é mais limpa que a sua.

Ele fechou a Bíblia, virou as costas e se foi, todo agitadão, mexendo os braços, furioso e apontando pra mim:

— Satanás! Demônio! Eu avisei, eu avisei! Aberração!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Pô, depois me arrependi. Porque não sou de responder. Prefiro deixar quieto. Mas naquela situação ali transbordou. Inferno?! Pooorra. Se o cara vem na curiosidade, no respeito, show, não tem problema: eu converso. Mas já chega no julgamento? Metendo dedo na cara? Sem interesse na minha pessoa, na minha história, nos meus motivos? Sifudê. Quem é que gosta disso? É uma violência do caralho.

E de violência eu quero distância. Lá na minha cidade era pesado. Teolândia, Bahia, sabe onde fica? Uma hora de carro de Valença. E duas de Itabuna, ou Jequié. Teolândia é a terra da banana. Então, se você nasce numa família que tem um caminhão pra transportar banana, pode sonhar com alguma coisa. Senão, como era o meu caso, filho de mãe gari e pai motorista de trator, só sobra torcer pra escapar. De verdade? Se eu não tivesse deixado Teolândia eu taria morto. De acidente de moto, como muitos jovens lá, de briga em bar, ou de tristeza. Vários jeitos de morrer nesse Brasilzão aí, bróder. Quando eu tinha uns cinco anos vi um vizinho cortar o braço do outro no facão, ali no quintal. O cara correu, caiu, sangrou até morrer e ninguém veio acudir. Minha mãe puxando eu e meus irmãos pra gente não ver aquilo. Mas eu vi. E lembro toda hora.

Comigo onde pegava mais é que me humilhavam na escola. Sabe o moleque perseguido pra cristo? Era eu. Ah, véi, diziam que eu era magrelo com cabeção, que era horroroso, que parecia o Smilinguido. Tá ligado o Smilinguido?, a formiguinha evangélica dos desenhos de antigamente? A gente morava pertinho da escola. E todo dia na saída, no trajeto até a minha casa, que dava uns cinco minutos, era aquele mar de moleque me zoando, eles me chutavam, tomavam meu boné, me xingavam, me provocavam pra sair na mão com eles, Smilinguido não sei o quê, aí cabeção, trouxa, corre pro colo da mamãe. Uma coisa horrível. E eu não era esquisito, cara. Eu era normal. Saca essa foto que minha mãe me mandou. Eu mais novinho. Não tinha nada de mais. Mas sabe o que é? Eu era fraco. Tímido, retraído, fraco de espírito. Não sei. Natureza minha, acho. Aí, quando é assim, a galera que é má, que tem coração ruim, essas pessoas sentem o cheiro e se aproveitam. Tipo urubu na carniça. Moleque de escola é foda, cê tá ligado, todo mundo tá. Quando a humilhação começa é difícil acabar. Aquilo persegue a gente todos os anos, em todo lugar, dentro e fora da escola. Ainda mais em cidade pequena. Mesmo sem ter feito nada, não sendo nada, se te escolhem já era. O malandrão, o popular, o bonzão precisa trucidar o fraco pra se fazer. Foi foda pra mim.

Chegou um tempo que meu mundo diminuiu tanto que ficou menor que Teolândia. Meu mundo passou a ser debaixo da cama. De verdade mesmo. Eu não saía de baixo da cama. Vinha gente em casa, amigos dos meus irmãos, amigas da minha mãe, tocavam a campainha e eu corria e me enfiava nesse mundinho meu. Mas eu queria que fosse de outro jeito. Eu queria conversar com as pessoas, ter amigos, brincar. Só que de tanto que me massacravam na escola eu passei a acreditar que qualquer um que se aproximasse ia me zoar, me fazer sentir daquele jeito ruim. E passei a acreditar que a culpa era minha, que eu merecia aquilo. Perdi muita coisa por não conseguir me relacionar. Perdi o gosto nas coisas, perdi ano, e olha que era bom aluno, hein?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

No meio da sexta série as professoras chamaram a minha mãe e me pularam pra sétima, que era pra eu ficar junto com a minha irmã mais velha e ela me proteger. Mas não adiantou. Eu fazia os trabalhos em casa, no capricho, na dedicação, deixava tudo bonito, e não era capaz de apresentar lá na frente. Eu não conseguia. Só tremia e chorava. E todo mundo ria de mim. Passei a achar que eu era uma formiga mesmo. E me escondi pra não me esmagarem de vez. Põe terrível nisso, bróder. Quando a gente tá enfiado debaixo da cama não vê a janela, o céu, o sol. Só vê o chão. Por isso eu digo que taria morto se ficasse na minha cidade. Sem carregar a vista pra longe, sem olhar pro horizonte, estar vivo ou morto deixa de fazer diferença, né? Sei lá, é assim que eu penso.

Aos 14 eu comecei a procurar um jeito de sair daquela prisão. Pela internet conheci o universo das tatuagens e cheguei nuns vídeos do Rick Genest, um cara do Canadá que tinha o corpo quase 100% tatuado, inclusive a cara e o couro cabeludo. Ele dizia que a tatuagem é a extensão do que nós somos, um jeito sincero de expressar o nosso interior. Eu fiquei maluco nisso aí. O Rick passou a ser o meu herói. Depois ele caiu de um prédio e morreu. Disseram que foi um acidente, que ele tava bêbado. O Rick tinha a mente forte, era decidido, não se importava com o que os outros achavam dele. Fazia a vida parecer mais leve. Ele virou uma janela pra mim. Aí eu fui e fiz a minha primeira tatuagem: o símbolo do Om, o mantra indiano, cê tá ligado? É a representação da essência das coisas, da origem, do começo de tudo. Fiz em Teolândia ainda, mas já imaginando que pra ser igual ao Rick, tatuar tudo e me fortalecer pra me tornar eu mesmo, eu tinha que vir pra São Paulo. Na cidade grande ia rolar mais abertura, mais tolerância e, com tanta coisa pra fazer e se preocupar, todo mundo ocupadão, ninguém ia perder tempo me escaneando e me julgando. Viajei, né?

Um tempo atrás eu mandei currículo e consegui um trampo numa pizzaria em Osasco, que é onde eu moro. Me contrataram sem me ver. Até que um dia os donos começaram a me ofender. Queriam que eu fosse embora, mas não tinham coragem de me demitir, porque não tinham motivo, então passaram a me detonar. "Aí obscuro, ô meia-noite, hoje você vai lavar o banheiro, ô sombrio, blade, dark". Era uma humilhação atrás da outra. Mas eu aguentei firme, só com o celularzinho no bolso, pá!, gravando tudo. Processei eles e ganhei. Difícil pacarai, mas não tanto como em Teolândia.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aqui em São Paulo trampei primeiro de pintor de prédio. Depois telemarketing, distribuição de panfleto, pizzaiolo. Pra juntar um dinheiro e me tornar fotógrafo, que era meu sonho profissional, e fazer as tatuagens. Depois da primeira, as coisas ficaram claras pra mim. Pensei assim: se as tatuagens são uma extensão da minha essência, eu vou tatuar por fora que é pras pessoas enxergarem quem eu sou por dentro. Doida essa parada, um paradoxo, mas foi isso aí. Quanto mais eu cobrisse a minha pele, a ponto de ficar irreconhecível, mais as pessoas poderiam me conhecer. Porque eu finalmente seria eu e não quem elas queriam que eu fosse.

A segunda tatuagem foi uma clave de sol nesse braço, mas faz tempo que cobri. Ah, porque não tem mais lugar e aí eu vou tatuando por cima. Agora que tá tudo preto, eu posso vir fazendo traço branco por cima. Não tem fim. Já tatuei até na palma da mão, mas com o tempo apaga. Onde dói mais é na orelha. Véi, beira o insuportável. Tanto que só fiz uma e deixei a outra pra depois. Dói também aqui ó, nesse parte lateral da testa. Nesse dia eu quase pedi pra parar. Área sem carne, só pele, então a agulha bate direto no osso. Mas a dor faz parte. Eu quero ver como convivo com ela. Dor nenhuma vai ser maior do que a que eu sentia em Teolândia. E, pra tu saber, eu não uso pomada anestésica pra fazer tatuagem. Pô, vou passar pomada pra fazer o bagulho e não sentir nada? Nem vai parecer que eu fiz. Do que eu vou lembrar depois? Eu quero lembrar, bróder. Pomada anestésica devia ter pra gente se lambuzar de manhã antes de subir no ônibus ou trombar com pastor maluco na São Bento, né não? Céloko.

Cara, tatuar o olho não dói nada. Tô te falando. Nada, nada, nada. Fui nessa da dor, porra, como será?, achei que ia ser osso, mas nada: dor nenhuma. Fiz os dois olhos no mesmo dia, em meia horinha tava pronto. Antes, passei com oftalmologista e psicólogo. Nos primeiros dias fica inchado, tipo conjuntivite, e a tinta não cobre tudo. Ela vai espalhando aos poucos. Quando me olhei no espelho a primeira vez, o que eu senti foi alívio, bróder. Um puta alívio. Eu não via mais aquele moleque frágil que servia de carniça pra urubu. O olho preto me fez enxergar melhor. A vida, pô. De olho preto eu vi que o mundo é maior, cheio de possibilidades, vi que eu não era um cara vazio, que eu tinha força e coisas boas dentro de mim. Eu saí de baixo da cama, fui pra janela e enxerguei o horizonte lá longe.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Até encontrei a Joyce, minha companheira de vida, a gente se gosta muito. Outro dia meus irmãos comentaram que, quando eu era pequeno, eles temiam que eu nunca fosse encontrar alguém, nunca fosse casar, trabalhar, ter filhos, nunca ia ter força, tá ligado? Hoje eles veem como eu mudei pra me tornar eu mesmo e ficam felizes. Minha mãe também. Ela tem orgulho de mim. Quando eu volto pra Teolândia ela me apresenta pra todo mundo: "Olha meu filho Diego, que lindo ele tá". Até tatuagem ela fez, mas só uma por enquanto. Enfim, as pessoas que eu mais amo nesse mundo ficaram contentes por eu ter conseguido sair do meu mundo escuro. Isso aí, bróder, pô, isso aí, nem sei o que dizer.

Porra, véi. Tá vendo? Agora tu sabe como é um olho preto chorando. Carai.

Mas tá valendo. Tamo aí pra isso. Seu Zé Pilintra, meu pai na umbanda, diz que eu não preciso esconder o que eu sinto e que eu tenho que ser malandro. Não no sentido de enganar os outros. Ao contrário: ser sincero e bom, porque só assim a gente pode entrar e sair dos lugares, das situações, sem se prejudicar e sem prejudicar os outros. Isso é que é malandragem. Grande Seu Zé. Ele vai estar comigo no fim de semana. Vou fazer a minha primeira suspensão corporal. Tô me preparando faz tempo e acho que nesse sábado vai rolar. Isso, com os ganchos nas costas. Tenho um amigo que suspende pela testa e ele conta que é uma sensação boa, de paz, conforto, visão. Quero sentir como é. Conhecer meu limite.

Furar e prender os ganchos eu sei que aguento. A parada é suspender. A gente mesmo que suspende, controla o cabo. A gente decide se puxa, se para, se segue em frente, se recua. Então eu acho que vai ser tipo uma meditação. Um momento de eu estar no controle total da minha vida, que é uma coisa quase impossível nesse tipo de sociedade em que a gente vive, né? Sempre tem alguém palpitando, metendo dedo na cara, querendo determinar o jeito que a gente deve ser, onde pode entrar, de onde deve sair, determinar que a gente só pode viver dentro dos padrões que eles inventam e qualquer um que sai fora é um demônio. Eu tô saindo fora, bróder, e não sou demônio porra nenhuma. Eu sou só o Diego.

Diego de Miranda Santos, 28 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.