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Trombadas

Os quilombos de Cléo

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

18/08/2022 04h01

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Na única foto de infância que me sobrou, porque a nossa casa pegou fogo, eu tô no quintal lá em Mauá e meu cabelo já era assim, eu não alisava mais. Devia ter uns 13 anos. Porque é o seguinte, viu: as meninas pretas da minha geração não eram donas da estética delas. A dona da minha estética era a minha mãe. E ela fazia o que sabia fazer, o que podia fazer, o que via outras mães fazerem, o que disseram pra ela que era a única coisa a fazer. Ela alisava o meu cabelo com pasta Guarnieri. Você sabe o que é pasta Guarnieri? Claro que não sabe. Era azul, à base de soda cáustica. Pergunta pra qualquer mulher negra da minha idade e ela vai te falar das feridas que aquilo abria na cabeça da gente.

No potinho do tal Creme Alisante Guarnieri, esse era o nome oficial, vinha escrito pra evitar contato com a pele. Tá bom. Como? Era uma pasta, porra!, escorria. Machucava todo o couro cabeludo. Eu ia de lenço pra escola. Depois, minha mãe comprou uma prancha de ferro que parecia um tostex, de fazer sanduíche, só que mernorzinha. Ela botava aquela coisa no fogão e, quando tava bem quente, em brasa, aí ela abria, tchum, tchum, um pedaço do meu cabelo lá dentro e, pum, fechava. Tssssssssss! Sabe o barulhinho? Tssssssssss! Ô se queimava. Lógico. O cheiro do meu próprio cabelo queimado é um negócio que eu nunca vou esquecer. Tá aqui dentro do meu nariz, das minhas feridas, da minha história.

Ah, aconteceu que eu passei a ter consciência. Primeiro consciência estética, que puxou consciência sobre a negritude, e passei a não querer mais aquela violência pra mim. Podiam me chamar de cabelo duro, bombril, o que fosse. Eu dizia: fodam-se, vocês não fazem ideia do que é uma prancha de ferro em brasa e uma pasta Guarnieri, então quero que se fodam. Mas vou culpar quem? A minha mãe? Lavradora, com pouco estudo, que veio do interior e aqui trabalhava o dia inteiro fazendo faxina na casa dos outros e à noite ainda lavava e passava pra fora? Vou culpar a guerreira? Ou a estrutura social que ensinou pra ela que "é assim mesmo", que naturalizou até a pasta Guarnieri e o tostex de cabelo? Ah, tenha santa paciência! Pra cima de mim não. E te digo mais: se eu quiser alisar meu cabelo amanhã, não vai mudar um milímetro do que eu penso. A minha negritude está nas minhas ações e no meu pensamento.

Mas naquele tempo o nosso horizonte era tão curto, tão curto, você não faz ideia. A periferia pra nós era lugar de uma certeza: o mundo tinha aquele tamanho e a nossa vida jamais transbordaria. Hoje tem internet, mais transporte público pra rodar por aí, a militância é mais organizada. Antes a gente só seguia o fluxo atrás de trabalho, girava que nem pião, sem sair do lugar, e no máximo tentava não sentir medo. Ah, putz, eu tinha medo de tudo, um medo horrível, pavor. Da mula sem cabeça, do homem do saco, do lobisomem, da Rota. A Rota. Nada me dava mais medo do que a barca da Rota. Eu saía de casa e, mesmo que fosse só pra ir até a mercearia da esquina, ia rezando pra não cruzar com eles. Até hoje me arrepia. O camburão vinha devagarzinho, todo apagado, e de repente jogavam uma luz forte na nossa cara. Eu e minhas duas irmãs. Três meninas. Três crianças carregando os sacos de roupa passada que a gente ia levar pras freguesas da minha mãe. Mas os caras não queriam saber. A intenção era amedrontar mesmo. Pra gente não ousar levantar os olhos e enxergar qualquer horizonte mais distante. Muito marcante isso. Te falar, viu.

TAB Trombadas - Cleonice Dias - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Só que um dia eu comecei a vir pro centro da cidade, a sair de Mauá e circular. Aí, menino, aí já viu. Eu vinha pros bailes black. O salão São Paulo Chic e a quadra da Camisa Verde na Barra Funda, tinha também a Chic Show no Palmeiras, shows do Zapp, Tim Maia, Jorge Ben. Que beleza aquilo! A negrada com seus cabelos maravilhosos, todo mundo na estica, dançando, uma puta de uma comunhão que vou te falar. Mudou tudo na minha vida. Consciência de mim, sabe? Eu passei a me achar parte de alguma coisa, de algum lugar. Aquilo era um tipo de organização que ninguém tinha planejado mas rolava por amor, por necessidade. Uma força naquelas músicas, naqueles corpos, naquelas roupas. Foi nessa época até que eu comecei a me ligar no lance da estética, a querer ser estilista. Eu cortava o couro dos bancos dos ônibus pra fazer aplique nas calças e usar nos bailes. Hoje tô aqui, com a minha marca e a minha loja no Arouche, centrão da maior cidade do país. Quantas mulheres negras que criaram uma marca de roupas e abriram uma loja própria? Pois é. Agora me conhece. Cléo, muito prazer. Mas o que eu tô tentando dizer, acho, é que os bailes black, porra, os bailes black, hein? Eles eram um quilombo, entendeu? Um quilombo! Espaço pra gente sentir tudo o que não podia ou não sabia que pudesse sentir: confiança, orgulho, coragem. Era lindo.

Ali eu tinha aprendido um jeito de não ser sozinha. E eu sei muito bem como é ficar sozinha. Bom, agora tô falando de um fato formador da minha existência. Eu vou contar e você vai pensar "nossa! mas que absurdo!". É normal que pense. Se precisasse de um quilombo pra deixar de sentir medo, você veria de outro jeito. Mas é o seguinte:

Quando eu tinha 2 aninhos, a minha mãe saía pra fazer faxina, meu pai ia trabalhar na fábrica, e eu ficava sozinha em casa. Me deixavam no berço, com uma mamadeira e um potinho com bolachas de água e sal. Aí minha mãe abria uma frestinha da janela assim, dois, três dedos, que era pra entrar ar e as vizinhas me olharem de vez em quando. A gente morava em cortiço, então sempre tinha uma vizinha passando pelo corredor. Elas me viam pela fresta. Quanto tempo? O dia inteiro, oras. Quanto tempo dura uma faxina, mais ida e volta de trem, ônibus, metrô? O dia inteiro, não é? Então era o tempo que eu ficava sozinha todos os dias. Claro que eu não lembro de nada, era muito pequena, mas carrego isso. Deixa eu te falar. Não é que seja um sentimento, vamos dizer, ruim, vai. É um sentimento que pesa. Ele sempre vai estar comigo. Me forma, faz quem eu sou.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aí, outro dia, nem faz muito tempo, a gente falando disso em casa e a minha mãe contou que já me deixava sozinha quando ela era boia-fria em Adamantina, antes de a família se mudar pra Mauá. Ela saía cedinho pra colher café e eu ficava. Bebê, engatinhava. A diferença era que ela conseguia vir duas vezes no dia pra me ver. Disse que cortava o coração dela, porque da porteira ela me ouvia chorar, o meu grito. As pessoas ouvem um negócio desses e "ah, mas como é que deixa uma bebê sozinha assim?!". Como? Não tendo alternativa, meu anjo. As pessoas não conhecem o que que é uma vida sem alternativa.

Feliz? Sou. Mas a felicidade não é constante. É uma construção. Tem dia que eu não tô feliz e isso não quer dizer que eu seja infeliz. Pai, me economize! O problema é que nos últimos anos a gente tá com muitos dias infelizes nesse país. Só olhar pro tanto de porcaria que saiu do esgoto. Exemplo? Você têm o dia inteiro pra gente ficar aqui listando? Ficou fácil de ver: fome, falta de moradia, pregação da violência, exaltação da ignorância, o racismo, a homofobia, o machismo, a falta de compaixão, que é você passar, ver alguém comendo lixo e aquilo não te afetar. Você pode até não poder fazer nada naquele momento, mas não pode não se afetar. Porque aí é desumanização. Aí você morreu. Então, se eu responder essa sua pergunta com um sorrisão de Instagram e "claro, sou feliz pra caramba!", eu vou ser... Não, mentirosa não. Eu vou ser idiota.

Também não sou otimista não. A raça humana deu errado e deus já foi embora do Brasil faz tempo. Mas a gente precisa resistir, se organizar, se opor, gritar. Sem isso fica pior. Pra piorar sempre tem espaço. Olha, não dá mais. Não. Dá. Porra, gente! Não dá pra ficar no sofá vendo série e "ai, não concordo que as pessoas negras tenham menos oportunidade". Ah é? E o que você tá fazendo a respeito? Você, que trabalha em RH de multinacional. Tá só se enganando enquanto come pipoca e vê Netflix, ou tá fazendo um plano de mudança? Já convocou uma reunião na empresa pra discutir suas ideias? Quantos currículos de pessoas negras você separa e põe na pilha dos que não serão respondidos? Quantas senhoras negras da faxina você ajuda quando elas têm dificuldade de carregar o balde? Quantas vezes você se esconde atrás do "ah, é assim mesmo, esta além das minhas possibilidades"? Quantas mulheres negras ganham menos que mulheres brancas na sua empresa? Não tem resposta? O silêncio nessas horas não é uma opção, entendeu? É por isso que eu grito, foda-se.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

E vou jogar uma gritaria extra aqui pra gente pensar uma coisa. Olha só. Você me diz que seus antepassados vieram da Itália pra colher café no interior de São Paulo. Beleza. Ao mesmo tempo, os meus, que já faziam esse trabalho, eram largados por aí só com a roupa do corpo, pra mais adiante serem presos por vadiagem. Tô resumindo, mas não tô mentindo. O plano era exterminar os negros e embranquecer o Brasil. Alguém duvida disso hoje em dia? Enquanto os meus antepassados eram lançados ao desespero, os seus chegavam com esperança. Faz diferença, você não acha? Tô falando "meus" e "seus" pra facilitar, não é nada pessoal. Só que acaba sendo, cê entende? Porque a gente nasce e morre sozinho, mas a caminhada é coletiva. As coisas e as pessoas se ligam umas nas outras pra construir o mundo, pro bem e pro mal. Não é o seu caso, eu sei, mas não tem cabimento um branco dizer "ai, acho absurda a política de cotas". Ah, é? E não acha absurdo o seu bisavô chegar da Itália com emprego, moradia e salário acertados enquanto uma população imensa de negros aptos a fazer o trabalho era jogada na rua sem nada? O projeto de imigração europeia pós Lei Áurea foi a primeira política de cotas do Brasil. Tem coisa que, porra!, é só ler, estudar um pouco em vez de ficar repetindo besteira.

Bom, é essa gritaria que eu queria deixar. Agora preciso ir, tô atrasada pra minha aula de perna-de-pau. No Ilú. Isso, o bloco de carnaval. Ilú Obá de Min. Eu sou figurinista do bloco. E agora tô aprendendo perna-de-pau. Nunca falto, me dedico, me entrego. Eu acho que sempre quis ver o mundo de outra perspectiva, elevada, alta e não diminuída. Mas não se trata só disso. O mais importante que aprendi lá foi experimentar a beleza de certo desequilíbrio. Pra andar de perna-de-pau a gente precisa se desequilibrar. Se fica parada no equilíbrio, cai. Então é o tempo todo: desequilibra, retoma o equilíbrio, desequilibra, retoma o equilíbrio. E assim avança. Ah sim. A gente tá alta, olhando por cima, mas aterrada. Que é pra continuar fazendo parte e não esquecer que estar mais alta não te faz melhor. Perna-de-pau é vida. Agora vou indo mesmo. Pensa na gritaria, espalha ela. Tchau.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Cleonice Dias, a Cléo, 55 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.