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Trombadas

Os despejos de Wallace

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

01/09/2022 04h01

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Eu tenho 28 anos e só morei em quitinete a minha vida toda. Já fomos sete, mas agora tamos em dois: eu e a minha mãe. Meu pai eu botei pra fora faz uma semana. Ele é alcoólatra, pesou demais. Essa aqui tem 38 metros quadrados. A anterior, que ficava no terceiro andar, tinha 40. Aí a gente foi despejado e subiu na vida, veio pro décimo oitavo.

Pô, diferença até que tem. Dessa altura eu consigo ver umas paradas de natureza que não via antes. Tipo o verde do Pico do Jaraguá, que tá pralá, ó, e da Serra da Cantareira, mais prali. Vejo a torre da Estação Júlio Prestes também. Só a pontinha dela, tá vendo? Aí eu olho e penso no meu pai, porque é praqueles lados que ele deve tá. Cracolândia. Situação de rua, se bobear. Ontem à tarde passei um café e sentei aqui no silêncio. É, eu acho silencioso. O barulho dos carros no Elevado eu nem ouço mais. Sentei, fiquei olhando e vi uma coisa em que eu nunca tinha prestado atenção: a chuva chegando. Você já reparou nisso alguma vez? Um véu cinza, ele começa a dançar lá longe e vem vindo assim, vem vindo, vem vindo, um balé furioso, até que chega com tudo. Vruuum! Louco. Eu viajo nesses baguio.

Acho que na natureza o poder de mudar as coisas é maior. Na cidade não. Na cidade tudo é perpétuo pra quem nasce em quitinete. Eu tive uma visão outro dia: minha mãe no sofá vendo o Datena, meu pai bêbado largado na cama e eu criança, sentado nesse mesmo banquinho, 20 anos atrás. Cara, era a mesma coisa que hoje, tudo igual, tudo. Não mudou nada. Na hora me veio Racionais na cabeça: "A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim. A minha verdade foi outra, não dá tempo pra nada. Pá!" Cabou. Quer dizer, porra, você trabalha, trabalha, até sonha um pouco, mas no fim desperta, não mudou porra nenhuma e não dá mais tempo pra nada.

Na natureza é outro esquema, né? No começo desse ano pela primeira vez eu passei um mês longe daqui. Fui pra Gonçalves, em Minas Gerais. Um camarada meu mudou pra lá e me chamou. Cara, eu tava num declínio emocional filha da mãe. Sem emprego, com um herpes ocular que não sarava, até feriu a minha retina, aquela sensação de estar sendo consumido, cheguei no limite, sabe? Eu precisava me refugiar. Aí saí fora.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ah, meu, foi transformador. O que mais me impressionou é que lá no mato as relações se estabelecem de outro jeito. Não tem aquele negócio de oferecer algo já esperando receber. Aqui na cidade rola muito isso. As relações são sempre interessadas. Só que fica tudo escondido, subentendido, não dito, porque São Paulo é o lugar onde as palavras se perdem. Outra diferença é a relação com o tempo. Teve um dia de manhã que colou um bando de pica-paus numa árvore. Fiquei brisando nos passarinhos e nem almocei. Quando dei conta de mim passava das três da tarde. Aí teve outro dia que fiz uma pá de coisa, tomei café da manhã, varri tudo em volta pra tirar as folhas, alimentei as galinhas, fui na cachoeira, caminhadona braba, sobre morro, desce morro, e quando cheguei de volta não eram nem onze horas ainda.

Tudo isso me fez pensar que São Paulo não é lugar pra ninguém. A gente embarcou numa roubada. No caso dos meus pais, literalmente. Eles são retirantes cearenses. Minha mãe de Mombaça, meu pai de Quixadá. Um dia ouviram que "a vida lá é melhor", vieram, caíram na quitinete e nunca conseguiram sair. É tudo uma construção, né? A gente passa a vida ouvindo que o melhor tá no grande. Na cidade grande, no emprego grande, no carro grande, no supermercado grande. Os caras constroem o mundo assim pra depois venderem sonhos pra gente. Mas sonho tinha que ser de graça. Não faz sentido pagar. Só que tamos aí, pagando pelos sonhos com a nossa força de trabalho barata e crendo na promessa de bem-estar que nunca se cumpre. "Ah, mas você tem que escolher", falam os fãs do Elon Musk. Pô, só fazer um parênteses nessa parada do Elon Musk: esse cara é glorificado como se fosse alguém a ser copiado, como se servisse de inspiração, sendo que é um doente, pra mim tinha que tá internado. Bom, aí os fãs do bonzão dizem que a gente tem que fazer escolhas: ou sonha ou vive. Mas por que pra galera que nem eu, os retirantes, os camelôs que nem minha mãe, os balconistas de boteco que nem meu pai, por que pra gente não pode ser "e" em vez de "ou"? Sonhar E viver. A violência do Brasil, pra mim, tá nessas sutilezas, sacou? E o que a gente quer é tão pouca coisa. A gente só quer ficar bem, não ser refém a vida inteira, poder escolher de verdade. Eu? Eu queria comer manteiga em vez de margarina.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Bom, o meu caminho de sonhar e viver é na arte. É como eu lido com essas aflições, essas angústias todas. Em 2015 comecei a organizar as minhas fotografias, ano, digital, filme, PB, cor, e aí percebi que tinha muita foto do chão. Muita mesmo. "Nossa, quanta imagem olhando pra baixo!" Juntei tudo e fiz um livro, com a grana da indenização que eu recebi quando me mandaram embora de um trampo. O livro chama "Baixa Estima". Meu jeito de mexer com a minha baixa autoestima, tá ligado? Desde pequeno as pessoas me falam "Anda reto, menino! Endireita essas costas. Vai ficar corcunda". Na fotografia eu elaborei melhor isso e fui expandindo pra outras coisas. A peça mais nova é esse dado, olha. Ele tem a palavra "fé" em cinco faces e "sorte" numa só. Jogaí, vê se você tem sorte igual o Elon Musk ou fica só na fé como a Maria minha mãe e o Antonio meu pai.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Nesses trabalhos de arte eu assino como Cícero Costa. Numas de buscar lugar pra minha identidade nordestina, ter um nome comum, de trabalhador e também do santo querido do povo de lá. É curioso que os nordestinos que têm filhos em São Paulo tentem fugir dos nomes comuns. Eu sou Wallace. Meu irmão é Michel. Nosso primo é William. Então, pra amarrar tudo e ter uma camada de proteção, sei lá, decidi assinar Cícero.

Quer ver outro trampo meu? Fiz esse aqui, um verbete de Wikipedia pra minha mãe. Pra reivindicar o direito dela de ter a vida contada também, por que não? Botei foto da banca de roupas que ela tem no Brás, retrato 3x4 de documento antigo, aí eu falo da grande seca dos anos 1980 que obrigou ela a vir pra São Paulo e no tópico "Curiosidades" escrevo assim: "Maria Alice gosta de café doce, de tomar chá à noite antes de dormir, principalmente de capim-santo, gosta também de chocolate branco, sequilho, de plantas, de crochê em cimas dos móveis da casa. Ela congrega na igreja Casa Firme, unidade da Santa Cruz". Mas, pra você ver: a plataforma só aceitou como página de teste. Não entra como página principal por causa da falta de "importante" e "notoriedade" no artigo.

Recentemente eu experimentei fazer escultura. Fiz essas garrafinhas amassadas de corote. Essa em cimento, essa em ferro e essa em bronze. Aí é pra falar do alcoolismo do meu pai. Ele tinha uma portinha, um bar, na "cracolândia". Vendia corote, cigarro solto, navalha pra cortar pedra, antena pra cachimbo, as coisas do rolê dos caras. Os clientes eram os usuários. Eu ia muito lá, ficava na função do corote retornável. Dois e cinquenta o fechado, dois reais se trouxessem a garrafinha vazia pra encher. Meu pai alcoólatra trabalhava vendendo álcool. Era uma questão pra mim. Um dia ele me falou: "A droga mais vendida no fluxo não é o crack, é o corote. E o corote é o fim da linha". Um bebedor de cachaça me falou isso.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

A gente nunca foi de conversar, ficar junto, eu e meu pai. No máximo sentava pra ver o jogo do Corinthians na TV. Um homem calado, seco, que eu só entendi faz pouco tempo. Ele tinha 13 anos quando saiu de Quixadá e foi pra Mombaça. Fugiu de um ambiente familiar violento, parece que os irmãos dele matavam pessoas por treta de vingança. Então ele aprendeu a viver sozinho. Como é que eu podia esperar amor e afeto de quem nunca recebeu amor e afeto? Entende quando eu falo que certas coisas se perpetuam? O meu pai sempre esteve inserido nesse contexto violento e continuou nele quando veio pra São Paulo. As amizades dele são do bar, o ganha-pão dele era o bar, as alegrias dele estavam no bar. O meu pai existia no bar. Arrancar ele desse mundo é agressivo, porque ele deixa de existir, sacou? É um homem bom, que tentou. Só que é um homem bom que bebe. Aí não tem o que fazer quando fica insuportável. Eu ponho ele pra fora.

Mas a culpa é do Estado, claro que é. E se tem uma coisa boa que a "cracolândia" faz é escancarar isso. Ó, me acompanha. O perfil do pessoal da "cracolândia" é o mesmo da população carcerária brasileira: jovens, negros, de grandes centros urbanos e sem o ensino fundamental completo. Só essa última parte diz tudo. Por que não foi pra escola? Por que teve que trabalhar desde criança? Por que precisou fugir da seca? Por que cresceu sozinho no mundo? Por que a mãe precisava de ajuda na barraca de camelô? Por que nunca pôde contar com o pai alcoólatra? Por que foi despejado da quitinete? Então, véio, cadê o Estado, cadê o bem-estar? O Estado desassistiu essa pessoa, largou, abandonou pra ver se morria. E dez anos depois capturou e prendeu ela. É um plano isso? Abandonar primeiro pra capturar depois? As esculturas de corote tratam disso.

Cê tem mais um tempinho? Queria te mostrar esse aqui, é meu trampo mais recente. Um álbum fotográfico, tipo um livro-objeto, tá ligado? Chama "Carta de Despejo". Fiz ano passado, mas as fotos são de 2018, quando a gente recebeu uma carta de despejo por "falta de pagamento com cobrança cumulada/inadimplemento". Primeiro, eu pensei em fotografar caminhão, caixa, carreto, um baguio bem clichê e caricato. Mas achei que reproduziria o que todo mundo espera de um despejo e por isso o impacto seria nenhum. Então tentei ser mais pessoal. Era o despejo da minha família. O meu despejo. Comecei a fotografar a nossa quitinete, os espaços, as nossas coisas, nossos móveis, objetos, as plantas, nós, meu pai, minha mãe. Tipo um álbum de recordação, desses de casamento, batizado, festa de 15 anos. Só que mais traumático. No final eu coloquei o fac-símile da carta que o oficial de Justiça trouxe pra gente. É que nessa cidade de palavras perdidas, ali tem umas que resumem tudo:

CERTIFICO E DOU FÉ. NADA MAIS.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Wallace da Silva Costa, o Cícero, 28 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.