Topo

Trombadas

A dívida de Marcelo Tarzan

Marcelo Hiroshi Tinen, 55, o Tarzan: "Minha honra foi pro saco e pra fugir da culpa e da vergonha, fui embora pro Japão" - Christian Carvalho Cruz/UOL
Marcelo Hiroshi Tinen, 55, o Tarzan: 'Minha honra foi pro saco e pra fugir da culpa e da vergonha, fui embora pro Japão' Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

22/12/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Como eu fico na frente da loja o dia inteiro e tô na beira da rodovia, né?, movimentado pra caramba, o pessoal passa e "fala, japonês!", "aí, buda, como é que tá essa força?", "fala, Pikachu!", "aí, Touro Sentado!" Eu só aceno com a mão e "opa, bom dia! Ohayogozaimasu!". Até Shaolin, cê acredita? "Vai, Shaolin!". Shaolin é chinês, cacete, mas tudo bem. Só que outro dia foi esquisito. Eu aqui na paz, tomando meu sol e ouvindo meu The Smiths no talo, I was looking for a job and then I found a job / And heaven knows I'm miserable now, que só dá pra ouvir no talo por causa da barulheira da estrada, me passam uns malucos num Tempra véio:

"Aí, drag queen!"

Porra! Drag queen?! Eu não entendi foi nada, putamerda!

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Neto de japonês. Meu avô foi um dos fundadores do caratê em Naha, na ilha de Okinawa. Ele era uma referência lá. Era o cara. Fabricava e tocava o samisem, um tipo de violão tradicional japonês, saca?, mas com três cordas. Agitava as festas tradicionais. Como era carpinteiro, inventou uns óculos de mergulho feito em madeira pros pescadores. E além de tudo era o defensor da cidade. Naquela época entrava muita embarcação da Coréia e da China, os marinheiros desciam e arrumavam confusão. Aí chamavam quem? Seu Shoiti, meu avô. Ele vinha e distribuía tapa na cara. Pá! Tau! Vum! Só tapa na cara. Pá! Tau! E caratê é aqui, ó, soco rodado! Agilidade! Soco rodado! Resumindo, o meu avô era foda. Luthier, violeiro, carpinteiro, carateca. Não, cê não tá entendendo. Ele quebrava caibro de telhado na mão. Kiai! Kiai! Kiaaaai! Tá de brincadeira. Meu avô foi o bam-bam-bam em Naha. Muito tempo depois, aqui no interior de São Paulo, ele ensinou caratê pro Antonio Inoki, já ouviu falar? O Inoki foi o cara que em 1976 fez uma luta contra o Mohamed Ali numa espécie de primórdios do vale-tudo. Antonio Inoki. Aluno do meu avô, bicho. O véio era foda.

Mas aí arrebentou a Segunda Guerra Mundial, alguém disse que no Brasil davam terra de graça, ele acreditou e veio. A esperança do meu avô era enriquecer e voltar pro Japão. Ele até deixou um filho pequeno lá com uns parentes. Mas acabou ficando pra sempre, claro. Puta ilusão. Ele foi primeiro pra Tupã, Marília, essa região no Oeste de São Paulo, ser lavrador. Evoluiu, passou a arrendar terra, ganhou um dinheiro e se estabeleceu em São Bernardo do Campo com uma quitanda. Aí nasceu meu pai, que já tinha um pouco mais de visão. Meu pai lia jornal brasileiro. Olhava a parte de classificados e "ô, esse negócio de vender casa, terreno, dá mais dinheiro que quitanda, né?". Virou corretor de imóveis.

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O primeiro lugar que botaram ele pra trabalhar foi bem aqui, Cotia, de frente pra Raposo Tavares, que só tinha duas pistas ainda. Era tudo mato, estavam loteando a área. Meu pai vinha todos os dias de São Bernardo. Vendeu terreno pra cacete, chácaras, mansão em condomínio. Ele se deu tão bem que acabou montando a própria imobiliária. Foi aí que começou a minha desgraça. Quando eu fiz 14 anos, ele me pôs pra trabalhar com ele. O nosso escritório era nessa casa onde eu moro e tenho a loja agora. E como eu sempre gostei de estatística, porcentagem e o caramba, me saí bem no serviço também. Aí eu completei 18, meu pai não tinha nem 50 e se aposentou, disse "Agora toca você, que eu tô cansado". Eu: Opa!, beleza!, tô feito! Assumi a imobiliária.

No início até que deu certo, sabe? Mas eu fui perdendo a mão porque as pessoas que trabalhavam pra mim, e os clientes também, me davam chapéu adoidado. Combinavam uma comissão menor e iam direto pro cartório fechar o negócio. E eu lá que nem a música do Gonzaguinha: com a bunda exposta na janela pra passarem a mão nela. Porra, é triste a gente descobrir que a índole das pessoas não é igual a sua, saca? Mas eu insisti. Não queria acreditar que existia gente picareta nesse nível. Me endividei no banco pra anunciar os imóveis nos jornais. Fazia propaganda pra cacete. Acumulei muita compra de anúncio e tomei uma fubecada braba. Quebrei. A gente ficou devendo uma puta grana. Em valores de hoje, tipo uns 300 mil. Meu pai, decepcionado comigo, só balançava a cabeça e me dizia "Deixa tudo pro banco, agora já foi. Larga tudo, não tem mais volta".

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu não sei explicar como eu me senti, não. Eu tava fudido, essa que é a verdade. Fiquei arrebentado por dentro. Sofrendo por ter causado aquilo, envergonhado, só pensava "Cacete, eu quebrei o negócio do meu pai! Ele confiou em mim, me deu a imobiliária de mão beijada e não tive competência de levar adiante. Não tenho mais condições de andar de cabeça erguida. A minha honra foi pro saco". Entrei numa depressão total. Eu ferrei meu pai, bicho. Cê sabe o que é isso? Então, pra fugir da minha culpa e da minha vergonha, fui embora pro Japão.

Eu só queria respirar e quem sabe recuperar um pouco da minha dignidade mandando dinheiro todo mês pro meu pai. Se eu nunca mais voltasse e morresse por lá, tudo bem. Que pelo menos eu virasse um ancestral merecedor das orações no butsudan, o oratório japonês, antes das refeições. Aí fui trabalhar numa fábrica da Mitsubishi que produzia cabines primárias de força, umas estruturas enormes que geravam energia nas indústrias pesadas. Eu era da primeira leva de brasileiros nessa fábrica, quinze dekasseguis no total. O nosso serviço era o que ninguém queria fazer: ficar no sol, na chuva, na neve, no vento lixando metal na mão, sem lixadeira, porque a lixadeira agredia demais o material. Lixa, lixa, lixa, dez horas de lixa, e depois as cabines seguiam pra dois véinho, dois ditchanzinho, pintarem. Eu me sentia mal, tão puto comigo mesmo, que me matava de trabalhar. Meio camicase, saca? Lixa, lixa, lixa, lixa, lixa. No tempo que eu lixava dez peças, os outros 14 brasileiros juntos lixavam três.

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Um dia, na hora do almoço, o diretor do departamento sentou com a gente no refeitório e começou a perguntar pros brasileiros:

-- Você. Qual sua profissão?
-- Ah, eu sou dentista. Vim aqui fazer um pé de meia e vou voltar pro Brasil pra abrir meu consultório.
-- E você? Faz o quê?
-- Ah, eu sou engenheiro. Vim só ganhar dinheiro e, quando retornar, vou investir no ramo de construção.

Aí chegou a minha vez.
-- Você é o quê?
-- Eu sou pobre mesmo.
-- Como é?
-- Na verdade eu sou mais mais pobre que pobre, porque, além de não ter dinheiro, eu devo dinheiro, meu pai deve dinheiro, minha mãe deve dinheiro, meu avô deve, até a minha obatchan deve dinheiro, tadinha. Família inteira ferrada. E por minha culpa.
-- Agora eu entendi porque você trabalha bastante. Se quiser eu te arrumo hora-extra no setor de pintura.

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Claro que eu quis. Eu tava ali pra sofrer, não pra passear. Na pintura tinha dois problemas. O primeiro era o tíner que misturavam na tinta. Forte pra cacete. Eu saía das cabines com o nariz sangrando, a boca sangrando. O outro problema eram os andaimes. Metade do tempo a gente gastava montando e desmontando andaime. Chamei o diretor e falei pra ele:

— Seguinte, chefia. Esse negócio de andaime não dá não. Eu sou do Brasil, moro na floresta. Lá eu penduro em árvore, pulo, não tenho medo de nada. Então eu vou pintar essas cabines aí pendurado, sem essas merdas de andaime. Pinto primeiro toda a parte de cima, depois seguro assim, assado e venho baixando e pintando. Vai ser muito mais rápido.

O diretor todo feliz:
-- Oh, jungle boy! Tarzan! Hiroshi Tarzan!
-- Isso aí. Tarzan! Deixa comigo.

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então eu desenvolvi esse método de pintura que a japonesada da fábrica olhava e dizia "Ih, vai morrer". Porque a cabine tinha 5 metros de altura. E eu não usava corda, EPI, porra nenhuma. Me segurava no braço. Enquanto os dois véinho pintavam uma cabine eu já estava na quarta, ou quinta. No final da linha de produção, os caras passavam um laser pra ver se a espessura da tinta tava nos conformes e "oooooooooooh! Tarzan bom! Tarzan bom!" A minha pintura da selva era perfeita. Passei a ficar na fábrica direto. Dormia num sofá dentro do fumódromo. No final do mês, eles chamavam a gente pra fazer o pagamento. Pagavam em cash, dólar, dentro de um envelope. Cada brasileiro recebia um envelope fininho assim. Eu era sempre o último. "Tarzan, vem". Eu ia todo sujo de tinta, sangue escorrendo do nariz, até pelo olho eu sangrava depois de um tempo, pegava um envepolão grossão, baixava a cabeça e dômo arigatôgozaimasu, que quer dizer muito obrigado. Aí a pessoa do RH mandava esperar, porque tinha mais. Dois, três envelopes. Dez mil dólares! Putamerda! Tô bonito!

E assim eu fiquei dez anos no Japão. Eu era jovem, forte pra cacete, aguentava qualquer coisa e tinha uma culpa pra tirar de dentro da minha alma. Lembro de um ano que o bônus da japonesada foi um absurdo. Os brasileiros não ganhavam bônus, só salário e hora-extra. Aí teve um festa e a presidente da empresa foi fazer um discurso:

— Nós tivemos um ano excelente. Aumentamos a produção e nossos clientes estão muito satisfeitos. A companhia agradece a todos os funcionários e em especial ao Marcelo Hiroshi Tarzan, que ajudou a gente a superar as nossas metas e repartir os bons resultados das vendas.

Pô, eu subi no palco e a japonesa só baixando a cabeça pra mim. Aquele silêncio, saca? Setecentos funcionários ali na frente baixando a cabeça pra mim em agradecimento e respeito. Eu acho que foi o dia mais emocionante da minha vida. Fiquei amigo da presidente. Uma vez por mês ela me convidava pra almoçar fora. Restaurantes finos, saca? Eu, que tinha saído do Brasil arrasado, ter esses momentos aí, porra. Porque quando cheguei no Japão eu não tinha mais esperança em nada. Eu vivia tenso, triste, não acreditava mais nas pessoas, nem em mim eu acreditava. Passei dez anos sem ninguém lá, cê acredita? Eu era bem paquerado pelas moças do escritório, porque era novo, forte, cabeludo, parecia um popstar japonês. E ainda ajudava no bônus anual da galera. "Jungle boy bonito, né?", a mulherada dizia. É, jungle boy bonito mas não presta pra sair com ninguém não. Jungle boy só presta pra trabalhar. Eu me achava um bosta completo. Como é que eu ia me relacionar com alguém? Pra ser um peso pra pessoa? Estragar a vida dela? Sai fora. Um fudido só basta. Não tem necessidade de dois. Mas com essa história da pintura da selva eu comecei a me recuperar. Tive que sangrar pra pagar a minha dívida, né?

Trombadas Tarzan - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando voltei pro Brasil, e só voltei porque a obatchan morreu e eu me senti muito triste, eu tava bem de grana, me casei, tudo mais, e fui fazer um curso de barman. Só que eu nem bebia. Mas conheci o pessoal da noite, achei legal e quis abrir um bar. A casa aqui, que tinha sido a imobiliária do meu pai, tava fechada. Eu pensei: beira de estrada, passa gente pra caramba na frente, ponto bom. O bar vai ser aqui mesmo. Achei no Primeira Mão uns móveis e equipamentos de um restaurante falido e comprei. Paguei 4 mil, trouxe pra cá e soquei tudo aí dentro. Então teve um dia que eu voltei muito tarde pra casa e a minha esposa não quis me abrir a porta. Vim pra cá. Tinha um sofá-cama véio aí, mas pra abrir ele eu precisei colocar pra fora as mesas e as cadeiras que tinha comprado pro bar. Na manhã seguinte, tocam a campainha:

-- Ô, japonês. Essas coisas de restaurante tão à venda?
-- Não tão, mas se você fizer uma oferta boa a gente pode negociar.
-- Te dou 30 mil em tudo.

Eu fingi que tava pensando, fazendo contas, sem demonstrar emoção, japonesamente, né?. Eu olhava os móveis, que eram coisa fina, tipo art déco, tinha uns espelhos grandes, muito bonitos, coisa de primeira categoria. Mas eu paguei 4 e o cara tava me oferecendo 30. Putamerda! Tô bonito de novo! Sou um iluminado, apesar de tudo.

— Negócio fechado. Pode levar.

E assim eu entrei no ramo de compra e venda de antiguidade. Agora deu uma caída, mas dá pra pagar as contas. O que tem muita saída são peças de carro, moto, coisas relacionadas a estrada, posto de gasolina, placas. Sabe o que é? A moda dos magnatas hoje é trazer a garagem pra dentro de casa. As visitas entram pela garagem, que tem lá o carrão, a motocona, tipo Tony Stark Homem de Ferro, e precisa de uma decoração de respeito. Daí que o foco dos arquitetos e decoradores são esses itens. Hoje a mística do cara bem sucedido é isso aí, a garagem vintage, estilo, Brooklyn, Nova York, yeah! Falando nisso, vamos tomar uma? Tenho umas geladas, ó, na minha geladeira vintage. Vintage é isso aqui: original até na ferrugem. E essa funciona. Saúde! Banzai!

Então eu moro e trabalho aqui. Me separei, sou sozinho, não tenho televisão, sete da noite já tô na cama. Aí acordo duas da manhã pra fazer faxina, lavar roupa, o serviço doméstico. Numa dessas madrugas, eu passei um café e vim olhar a Raposo por aquela janela da frente. Um cara grandão, um metro e noventa, colou no portão, ficou olhando e eu, pá!, na hora identifiquei. Esse cara tinha pulado aqui uma vez, roubado umas luminárias de bronze e depois teve a cara de pau de vir tentar me vender elas. Naquele dia eu só falei assim: Meu, se pular mais uma vez cá pra dentro você não sai. Vaza daqui. Aí nessa madruga ele voltou pra se vingar. Eu olhando da janela. O que esse cara vai fazer? Se ele pular, vai ter. Já fui me estralando. Soco rodado! Agilidade! Soco rodado! Que faixa o quê. Aqui não tem faixa, não tem quimono, nada dessas coisas. É o caratê que eu aprendi com meu avô. Soco rodado! Mas aí o que o sujeito fez? Cena de Mad Max, cê tinha que ver. O filho da puta puxou um saco preto gigante, acendeu um pavio e tacou aqui dentro. Um molotov de saco de lixo, cacete! Dá pra acreditar? Putamerda! Saí correndo, peguei a mangueira e apaguei o fogaréu. Mas, porra, e se eu tivesse dormindo? Tinha queimado tudo.

O pior é que agora eu não tenho paz. Porque pela janela eu li nos olhos dele que ele não se deu por satisfeito. Vai querer voltar, eu tenho certeza. E eu não fui sangrar no Japão, passar dez anos sem mulher, renascer, me salvar, pra ficar com medo de maloqueiro.

Marcelo Hiroshi Tinen, 55 anos, o Tarzan

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é um reencontro.