Topo

Trombadas

Os consertos de Sidney

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

12/01/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Tem um efeito colateral nesse negócio de ser engenheiro eletrônico que é o seguinte: saber que eu sempre posso consertar as minhas cagadas. Tem hora que eu não acho a peça pra substituir, tem hora que eu não acho tempo pra mexer, tem hora que eu não quero mexer e o serviço acumula anos nas prateleiras. Mas no fim acabo dando um jeito. Demora pra burro, mas dou um jeito. Por exemplo, quando tinha uns 13 anos eu roubei uma loja de parafusos na rua Florêncio de Abreu. Puta cagada. Moleque, né? Eu tinha ido lá comprar uma caixa de parafusos de latão. Tava esperando pra ser atendido e ninguém me atendia. Esperei, esperei, esperei e nada. Os caras nem aí pra mim. Ah é? Quer saber? Vou levar essa merda. Claro que não precisava. Eu tinha dinheiro pra pagar. Coisa idiota. Mas na hora eu pensei, Bom, vocês tão me ignorando, eu nunca mais vou voltar aqui, dane-se, ninguém tá olhando, tchum, passei a mão nos parafusos.

Só que a Florêncio se tornaria a minha segunda casa, junto com a Santa Ifigênia. Eu passei o resto da vida indo lá pelo menos uma vez por semana. Naquela loja nunca mais tive coragem de entrar. Eu parava na calçada, de longe procurava o dono atrás do balcão e, ano após ano, fui acompanhando o bigode dele ficar grisalho. Eu queria entrar e me desculpar, mas e a vergonha? Engraçado, porque agora me ocorre que eu demoro mesmo pra consertar certas coisas. Caramba.

Quer ver outra? Eu fiquei até os 18 anos sem os dentes da frente. Como pode, né? Quando a gente era bem pequeno, nem lembro que idade, pequeno mesmo, o meu irmão me passou uma rasteira e eu fui de boca no chão. O dentista disse que não dava pra consertar porque eu ainda tava crescendo. Até hoje não consertou bem. Fui pondo pino, pivô, jaqueta e sempre caía. Até que outro dia quebrou de vez, na raiz, e fiz um implante. Seria o conserto definitivo, né, mas, ôrra!, deu rejeição, mó confusão. Tô com um provisório que não para no lugar. Mas aí eu taco essa maravilha da tecnologia, ó, superbonder, e dou o meu jeito.

Não, não. Sem recalque de ter sido um adolescente banguela. Isso não me abalou nem me moldou. Acho que não. O que me moldou foi a empresa do meu pai. Ele foi jogador de futebol profissional. Sidney Daros, o Diabo Loiro. Jogou em times de São Paulo, Pernambuco e Portugal. Quando voltou da Europa, ofereceram pra ele uma empresinha na Barra Funda que fazia moldes de peças de carro. Ele comprou. Não sabia patavina, foi aprendendo o trabalho com os funcionários. Nessas, eu, que gostava de máquinas, ferramentas, essas coisas, comecei a brincar lá na firma. Não sei de onde vem isso, não. A minha lembrança mais antiga, pra você ter uma ideia, é de uma redação no primeiro ano da escola em que a professora pediu pra escrever sobre o que a gente queria ser quando crescesse. Eu escrevi que queria ser engenheiro eletrônico. Mas veja bem: eu achava que engenheiro eletrônico era o cara que consertava os fios da rede elétrica. Que médico, advogado, nada. Eu queria mexer em poste.

TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Depois tomei gosto em consertar, fazer as coisas voltarem ao funcionamento, dar vida de novo pra elas. É muito doido esse negócio. A melhor brincadeira de criança pra mim era provocar acidentes entre meus carrinhos, jogar uns contra os outros pra amassar, desmontar, detonar tudo, só pelo prazer de deixar novinho outra vez. Vai entender, né? Em casa eu torcia pra dar pau em batedeira, liquidificador, torradeira, pra poder abrir e fuçar. À certa altura meu pai até me comprou uma TV quebrada. Disse que era pra eu me acalmar: "Vai tomar uns choques e não enche a paciência." Ôrra, isso foi bem na época em que eu e um amigo malucão montamos um laboratório de química na edícula da casa dele. O nosso plano era inventar um carro movido a água. Mas o máximo que saiu dali foi uma copiadora braile capenga, porque a gente era dois sem-noção e fez um troço que imprimia do lado ao contrário. Puta fracasso. Com alguma funcionalidade mesmo a gente só conseguia produzir sabonete.

Aí entrou um serviço na firma do meu pai que era uma encomenda de moldes pra fabricação de um robô. Uma marca de maionese ia fazer uma promoção com ele nos supermercados. Eu já tinha feito um curso de eletrônica por correspondência e me meti a projetar o sistema do robô. Foi maravilhoso. Fiz tanta coisa que eu não sabia, mas tanta coisa. O robô andava, mexia os braços, as pernas e a cabeça através de um joystick que eu criei com peças de controle remoto de aviãozinho aeromodelo. Que tesão fazer essas coisas, meu, ôrra! Tesão de poder arriscar, testar várias possibilidades, imaginar uma solução e botar ela pra funcionar. Eu me amarro nessas coisas. Eu acho que foi um treco importante na minha vida isso aí. Era, e ainda é, o espaço onde eu piro, onde eu não preciso ser certinho. Hoje as pessoas não são muito a fim de arriscar, né? Querem segurança, seguir o roteiro, o padrão. E padrão é prisão. O padrão só é bom pra você dar um olé nele, mostrar que o diferente pode ser melhor.

TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Tipo quando eu me casei. Criei um robô pra levar as alianças até o altar. Mas quem disse que o padre permitiu? Não, nem pensar, de jeito nenhum, onde já se viu? Igreja Católica. Tá bom. Peguei o robô o fomos nos casar numa presbiteriana. Ôrra, eu fiquei mais nervoso que a noiva e a mãe da noiva. Muito mais. Cheguei umas quatro horas antes pra testar o robô, deixar ele pronto, arrumadinho e funcionando. Faltando 15 minutos, troquei de roupa e fui. Nem banho tomei. Tava com as unhas sujas de óleo ainda. Mal lembro da cerimônia, da reação dos convidados, nada, de tão tenso que eu tava. Meu irmão controlando o robô à distância e eu torcendo pra ele não quebrar no meio do caminho. Mas deu tudo certo. Com o robô e com o casamento, graças a deus.

Ah, as pessoas gostam, né? Eu é que não lido bem, acho. O inventor tem essa coisa de surpreender, de ver a cara das pessoas espantadas, aquela cara de ohhhh, como foi que ele fez isso?! Só que aí se me elogiam eu fico arrasado. Tenho um problemão com isso. Não gosto de ser elogiado. Pros amigos mais próximos eu até peço, Ôrra, meu, por favor, não fala, vai, não fala que ficou do caralho, pelamordedeus, porque isso acaba comigo. Não sei. Não me sinto bem. Tenho um conhecido de uma empresa de automação que eu acho tão arrogante que sinto vergonha por ele. Ele chega nos lugares dizendo que faz o melhor sistema de não sei o quê da América Latina, que isso e aquilo. Tudo conversa mole, mas ele faz essa autopromoção toda na maior naturalidade.

Eu já acho que o que eu faço é só trabalho duro, suor. Não tem dom, iluminação divina nem é maior ou melhor que nada. É só trabalho. Autopromoção é pra quem não tem trabalho bom pra promover, pode prestar atenção. Tudo garganta. Então eu fico na minha. Me prejudica, claro. Por causa disso eu nunca sei cobrar direito. Eu pego esses rádios antigos, vitrolas e receivers pra consertar, vejo tudo o que precisa, calculo as minhas horas e quando vou passar o preço pro cliente eu paro: Ôrra, tudo isso?! Que caro! Aí dou desconto. No fim eu acho que tenho medo de parecer arrogante igual àquele cara. Mas eu sei que os arrogantes é que se dão bem, né? O meu amigo arrogante tá rico e eu não. Então eu tinha que achar um meio-termo, porque entre aceitar um elogio e virar um arrogante deve existir um meio-termo, só que eu ainda não achei ele. Complicado. Não, terapia nunca fiz, não. Você acha que precisa? Sei lá, viu. Meu irmão natureba que planta café orgânico e faz análise e tal é muito ligado nessas coisas e às vezes me ajuda. A gente conversa, ele me explica as coisas.

TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

As invenções? Ôrra! Já inventei sistema de iluminação pra discoteca, muito brinquedo de bufê infantil, um aparato pra estande de vendas de apartamentos que fazia girar o decorado em torno do cliente, a corrida de cavalinhos do SBT eu que construí, os anjos, José, Maria, os Reis Magos e o escambau do presépio animado do shopping Iguatemi. Outro dia um médico da USP me pediu pra pensar numa máquina de costura endoscópica. Isso, pra costurar o estômago por dentro e substituir os grampos que usam hoje. Eu fiz, ficou bonitinha, agora precisa de financiamento pra miniaturizar ela e ver se funciona legal. E no meio disso tudo eu também conserto som vintage, adoro. Como eu te disse, é difícil ter um que eu não dê um jeito. Acho mó barato ressuscitar rádios dos anos 40, amplificadores dos 70, gramofones, vitrolas. Tudo coisa boa, aparelhos lindos, uma pena deixar morrer. Então eu conserto.

Sei lá, eu acho que tudo tem conserto. De certa maneira até a morte, viu. Essa bancadinha que você tá, sim, essa aí, eu fiz pra mexer com transcomunicação. Não sabe o que é? Comunicação com os mortos através de aparelhos eletrônicos, rádio, TV, geladeira. Existe, mas até hoje só picaretagem. Porque é muito difícil. Nem os espíritos que estão do outro lado sabem bem como fazer. A minha ideia é fazer alguma coisa pela qual eles consigam modular a energia desses aparelhos e falem com a gente por aí. A dificuldade é que eles estão numa energia muito acima da nossa. Teriam que baixar muito pra rolar uma sintonia e ainda não se sabe como fazer isso. Eles também precisariam dar permissão pra gente mexer nisso e, além do mais, eu acho que a gente nem tá apto pra receber e usar isso. Mas um dia vai rolar. Aí eu quero ver o que vai sobrar da Alexa, da Siri.

Meu melhor conserto? Ôrra, foi o do furto dos parafusos lá na Florêncio. Quarenta anos depois, eu já cinquentão, tomei coragem e entrei na loja. Fui direto no dono, ele de bigode branquinho já. Contei o que eu tinha feito, pedi desculpas e paguei o preço atualizado da caixa de parafusos, 100 paus. Ele não ficou bravo. Disse que quando era menino tinha roubado uma pipa numa loja e sabia como eu me sentia. Aí a gente saiu pra tomar um café juntos, riu pra caramba e eu me livrei disso. Nunca uma caixinha de parafusos de latão pesou tanto nas costas de alguém, né? Mas eu consertei a cagada. Demorou, mas consertei.

TAB Trombadas - Sidney Daros Júnior - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Sidney Daros Júnior, 61 anos

_______

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.