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Trombadas

O pé de cerejeira de Dona Iria

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

23/02/2023 04h00

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Venho eu lá de dentro para preparar o café, que é o primeiro trabalho do dia, e dou de cara com aquela zona no meu bar. Um holofote deste tamanho, de cegar a gente, o senhor tinha que ver, um caixão preto enorme cheio de fios ocupando metade do salão, um guindaste com um braço assim que raspava nas minhas garrafas, aí o rapaz no balcão com o violãozinho dele, sorridente, e meus fregueses todos pra fora, de pé na calçada e copo na mão. Peralá! Mas que negócio é esse?!

— É o Manu Chao, mãe. Ele veio gravar um videoclipe, me disse a minha filha Daniela. Ele é famoso, meio francês, meio espanhol. A produção combinou com a gente no começo da semana, lembra?

E precisava deixar meus fregueses na rua? Armar esse circo? Meu bar é bagunçado mas isso aqui não é bagunça. Ah, mas ele é famoso. Sei. Meio francês, meio espanhol. Nunca ouvi falar. Se ainda fosse o Charles Aznavour, o Julio Iglesias. Que música canta esse Manu? Olha, eu quase mandei ele se retirar, viu. Fiquei agoniada de não ter avisado os clientes com antecedência, pedido desculpas pelo inconveniente. Mas não. Quando eu cheguei já estava tudo de pernas pro ar. Se o Amadeu meu marido estivesse vivo pra ver uma coisa dessas, minha mãe do céu. Bom, mas no fim acabei indo trocar de blusa, vestir algo mais ajeitado, porque me pediram pra aparecer na filmagem. Só quero ver no que vai dar isso aí.

Iria, satisfação. Sim, Iria. Meu nome é uma homenagem à Cova da Iria, o vale no norte de Portugal onde os três pastorzinhos avistaram Nossa Senhora de Fátima. Iria como o verbo, não é? Algo que não foi, podia ter ido, mas ficou pelo caminho. Uma decepção. Ou uma esperança, depende. I-ri-a. Dona Iria. Exijo que me chamem de Dona Iria, o senhor não leve a mal. Outro dia entrou um moleque e "Ô, Iria, me vê uma água". Iria não, que eu nunca te dei essa liberdade. É Dona Iria. E se você quer um copo d'água peça ao menos por favor, senão vá tomar na sua casa. "Ô, Dona Iria, também não precisa pegar pesado, eu sou da casa." Por isso mesmo: já devia saber como é que o apito toca aqui.

É que depois que eu fiquei viúva precisei impor respeito pra seguir em frente sem o Amadeu. Foi duro. Vinham me cantar, fazer gracejo. Fogo, viu. Tem homem que vê mulher atrás do balcão e acha que estamos à venda. E eu sou maço de cigarro, por acaso? Sou refrigerante? O senhor veja uma coisa. Com aquele taco de sinuca que sobrou ali atrás da televisão, isso, bem ali, a mesa não tem mais porque depois do celular ninguém quer saber de bilhar, então, com aquele taquinho eu botei muito safado pra correr. Precisei ser dura, infelizmente, senão não dava conta. Até revólver na boca de um que ameaçou me atirar um banco eu enfiei uma vez, mas deixe isso pra lá. Então é Dona Iria. O senhor aceita uma água?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Agora 23 de fevereiro faz 41 anos que tenho o bar. Mas já era bar antes de nós. Mesmo balcão, mesmo piso, mesmas garrafas. Chamava-se Bar do São Lourenço, porque no andar de cima ficava a sede do São Lourenço, um time de futebol aqui da Pompeia. Hoje é Bar da Dona Iria. Ano passado, quando completamos 40 anos, meu filho Francisco me fez uma surpresa. Me chamou na varandinha, que estava iluminada, até estranhei, uma bandeira de Portugal no mastro dum lado, a do Brasil do outro, e quando pus a cara pra fora os fregueses cá embaixo cantavam o Parabéns. Eu me senti a própria rainha Elizabeth acenando do balcão do palácio, que deus a tenha. Fiquei tão emocionada. Me emociono muito fácil.

A maior emoção da vida foi voltar pela primeira vez à minha aldeiazinha no Trás-os-Montes. Chama-se Serapicos. Fazia 57 anos que eu tinha saído e achava que nunca mais regressaria. Mas meus filhos me fizeram essa surpresa e lá fomos. As coisas estavam todas, essa era a minha preocupação: que tivessem desaparecido. Mas continuavam lá, embora um tanto mudadas. A casa de pedras que meu pai construiu foi rebocada. A pontezinha rústica de madeira em que atravessávamos o ribeirão agora tinha uma de cimento no lugar. Assim que cheguei, corri para contornar a casa e procurar pelos olmos onde as cegonhas faziam ninho e pelo pé de cerejeira que nós tínhamos. Brincamos tanto ali eu, meus irmãos, meus primos. Os olmos já não estavam, tampouco as cegonhas. Mas o pé de cerejeira sim! Seco, uma pena, mas não tombou às mudanças.

Ih, eu sou difícil com mudanças. Jesus amado, como é duro pra mim. Acho que a mudança pro Brasil me custou demais, foi, vamos dizer, traumática, não é? Nós vivíamos bem na aldeia, tínhamos tudo, animais, hortas, pomares, mas enfiaram na cabeça do meu pai que no Brasil haveria mais. Ele acreditou. E o que houve mais foi sofrimento. Algumas alegrias, porque do contrário não se vive, mas no início foi só sofrimento. Cresci vendo a minha mãe sendo uma pessoa triste. Ela não se recuperou da mudança praqui. Em favela nunca moramos, mas a casa era de tábuas e não tínhamos eletricidade nem água encanada. Logo me mandaram pra Votuporanga, na casa da nora de uma madrinha de crisma. Eu nunca tinha saído do lado da família, nunca. E era tão pequena, meu deus. Eu ia na escola, ajudava nos afazeres da casa e o resto era tristeza. Por isso eu digo pro senhor: prefiro ficar onde estou e deixar as coisas como são. Mais dia, menos dia as mudanças se impõem mesmo, que há de se fazer?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Essas duas portas do bar, por exemplo. Pesam como chumbo. Por 38 anos eu as levantei e baixei no muque, todo santo dia. Foi só quando começou a pandemia e meus filhos vieram me ajudar que meu filho Francisco instalou um motorzinho nelas. Esse meu filho é um crânio, tem três faculdades. Quando ele tinha 20 dias e nós trazíamos ele à feira, que antes do bar nós éramos feirantes aí na Barão do Bananal, quando meu filho Francisco tinha 20 dias e dormia num caixote de alface embaixo da barraca, uma freguesa passou, olhou e disse assim: "Iria, esse seu menino vai ser muito inteligente". A senhora acha? "Tenho certeza! Veja a cabeça dele: é o formato da cabeça do Rui Barbosa. Um gênio". Dito e feito. Agora para subir e descer as portas do bar basta apertar o botão.

Aí minha filha Daniela botou maquininha de cartão, calculadora, televisão na Copa do Mundo e eu digo pra quê? A maquininha de cartão eu entendo, embora até dois anos atrás só aceitássemos dinheiro e tudo corria bem. Mas calculadora?! Não uso. Se o freguês me pede cinco maços de Marlboro, eu já entrego e dou o valor total, no ato, pois no que me virei pra apanhar os maços já fiz as contas de cabeça. Uns duvidam, então eu repito no lápis, pra provar. Jogo na televisão eu sempre fui contra, porque teve uma ocasião em que o Corinthians perdeu e um são-paulino soltou um rojão aqui dentro. Minha Nossa Senhora! As garrafas estremeceram todas, eu perdi a fala, nem me lembre. Mas aí está: agora tem televisão.

Por outro lado tem seda também. Gastávamos muito em guardanapo. Era pôr a tevezinha de guardanapo no balcão e na mesma hora sumiam todas as folhas. Que diabos. Aí vim a saber que pegavam para enrolar cigarro de maconha. Então, minha filha Daniela, que também é uma crânia e tem uma cabeça bem mais avançada que a minha, pôs seda pra vender. Por que dar de graça, não é? Comércio não funciona nessa base. Pois a conclusão que eu tiro é que há mudanças que se fazem à força, o tempo e as circunstâncias mandam. E há as coisas que por milagre ficam como estão. São dessas que eu gosto. O senhor veja o café. Continuamos a servir ele coado e adoçado. Me disseram que entrou na moda tomar café sem açúcar. Aqui não pegou e não vai pegar. Tudo tem limite.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— E o banheiro, mãe? O banheiro também mudou.

Ai é. Mudou, não. Passou a existir. Nunca tivemos banheiro no bar, e isso me causou uma porção de problemas. Quem precisava eu deixava usar o da minha casa. Moro nos fundos, subiu essa escadinha já está lá. Mas é casa antiga, com banheira, bidê e o senhor sabe como é: faziam xixi onde não deviam, entupiam o vaso, isso quando não passavam pela minha cozinha e levavam meus enlatados, minhas conservas, o que estivesse à mão. Uma vez chegou um casal, o rapaz pediu uma porção de calabresa e a moça quis usar o banheiro. Vá, minha filha, pode ir. Deu dois minutos o rapaz subiu atrás dela. Esperei um pouco e nada de voltarem. Já cheguei esmurrando a porta. Ô! Que sem-vergonhice é essa?! "É que ela passou mal e eu vim ajudar", gritou lá de dentro o rapaz. Sei. Ou vocês saem agora, ou eu tranco por fora e chamo a polícia. Saíram de cabeça baixa e foram embora. De modo que o banheiro no bar foi um avanço. Ficou lindo, o senhor quer conhecer? Destoa do resto de tão moderno. Entre, pode entrar, o senhor fique à vontade. Tem freguês que tira fotografia no espelho e tudo. Os taxistas são os que mais elogiam, dizem que não se acha mais banheiro de bar assim na cidade. Então essa foi uma mudança excelente, eu admito.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Os bebuns? São de dois tipos, basicamente. Os da casa e os de fora. Os da casa mais numerosos, graças a deus. Vem pouco estranho atualmente. A diferença é que pros de fora chega uma hora que eu paro de servir, pois sei quando o dinheiro deles acaba. E pra estranho não tem fiado. Já os da casa a gente liga pra família pra vir buscar. Tinha um senhor taxista cujo filho é grande amigo nosso. Chorava que nem criança no velório do Amadeu, o senhor precisava ver. Bom, mas o pai dele tomava todas. Aí mandava qualquer um buscar dinheiro no porta-malas do táxi, ele perdia a féria inteira do dia, não se aguentava. Uma vez encontrou com outro amigo, que era ali da serralheria, os dois começaram a beber e quando eu vi estavam os dois só de cuecas, um trocando de roupa com o outro. "Leve a minha camisa, pode levar, te considero muito", dizia um. "Então você que é meu amigo fique com meus sapatos", falava o outro. Aí eu cumpri com a minha obrigação: telefonei pro filho, relatei o ocorrido e ele veio buscar o pai. Mas a maioria é amiga da gente. Tem cidadão aí que passou mais tempo da vida no meu balcão do que na casa dele. E assim vamos indo.

Não, bebum não me aborrece, não. A gente se acostuma e aprende a lidar. Me aborrecem mais os sóbrios que chegam querendo levar embora as minhas coisas. Um cara da Souza Cruz quis trocar o expositor de madeira, disse que traria um novo, mais atual. Não, senhor, deixe assim. Aí outro: "Quanto a senhora quer numa dessas garrafas de Dreher de Uva?" E tem placa de vende-se nelas, por acaso? "Esse relógio Tropicana quanto custa?" Não custa nada, ele é meu. "O baleiro, quero comprar esse seu baleiro." Pois ele não está à venda. Mas que mania, não é? Não entendem que a minha história está nessas garrafas? Nos rótulos velhos, nos líquidos que já não prestam de tão velhos, na poeira acumulada nos vidros? Como é que podem querer comprar as minhas lembranças? Isso me bagunça o espírito mais do que o Manu Chao. Me ofende.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas eu sei que está no fim. Está próxima a hora de me desfazer de tudo. Sozinha já não aguento trabalhar tanto, e sinto que atrapalho a vida da minha filha Daniela. Ela também tem três faculdades, mas abriu mão pra me ajudar. Não está tendo vida pra ela, só pro bar. Não, eu nunca perguntei, mas as mães sabem quando um filho sofre. Bar cansa. É que ninguém vê, mas depois que o senhor toma a saideira e volta pra casa nós baixamos as portas e é aí que começa ao pesado: lavamos o chão, a louça, recolhemos as garrafas, abastecemos os freezers, deixamos as coisas mais ou menos pra recomeçar dali a pouco. Então eu vejo que essa rotina em breve deve mudar, passar pra outra pessoa com menos idade e mais energia.

Só que daí eu me ponho a pensar: quando não for mais nosso, será que o novo proprietário me deixaria vir para trás do balcão uma ou outra vez? Eu até sonho com isso, o senhor imagina? Eu vindo à feira, passando aí na porta, uma sensação de felicidade porque minhas garrafadas permanecem todas no lugarzinho onde sempre estiveram, e novo dono me convidando: "Venha, Dona Iria, venha me dar uma ajuda hoje pra matar a saudade". Ah, mas é claro: eu iria com muito gosto.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Como assim? Onde mais eu iria? Olha, à esta altura eu acho que só iria a Portugal ou, se é pra ficar aqui, que é o mais provável, eu iria tomar aulas de pintura em vidro. Nunca perdi a esperança de aprender. Uma vez, quando eu era novinha em Trás-os-Montes, uma amiga de minha irmã me presenteou com um vidrinho que tinha uns morangos pintados a mão. Eu achei de uma beleza, de um carinho, e isso jamais me saiu da cabeça. Só que o tempo foi passando, a gente vai vivendo, é feira, é bar, é fornecedor, freguês, aluguel, luto e acabou que não consegui. Faz anos que eu guardo uma porção de vidrinhos de geleia, de todo tipo e tamanho, e ando pensando muito neles. Uma senhora vizinha nossa disse que me ensinava a pintar, só que ela não está mais, não sei se morreu ou mudou-se. Então acho que vou mudar eu também e aprender pelo YouTube.

Iria do Espirito Santo Rodrigues Fernandes Pires, 73 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.