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'Homens de Ferrante não são pessoas bonitas', diz diretor de 'Amiga Genial'

Cena da peça "A História de uma Amizade" - Divulgação
Cena da peça "A História de uma Amizade" Imagem: Divulgação

Letícia Naísa

Do TAB, em São Paulo

05/11/2019 04h00

"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia." A frase solta é a única divulgada até agora do novo romance da escritora italiana Elena Ferrante, "A Vida Mentirosa dos Adultos", que será lançado nesta quinta-feira (7). As 18 palavras foram suficientes para causar um rebuliço na internet entre os fãs da autora da tetralogia napolitana a partir de "A Amiga Genial", que já vendeu mais de 10 milhões de livros pelo mundo e traduzida para 40 idiomas.

O tamanho do fenômeno em torno da história de Lila e Lenu, protagonistas de "A Amiga Genial" e suas sequências, foi apelidado de Febre Ferrante e não conquistou apenas leitores e a internet, mas também a academia e outros artistas que criaram adaptações.

A obra foi adaptada às telas em 2018 em formato de série pela HBO. Uma nova temporada, contando a segunda parte da história, inspirada no livro "História do Novo Sobrenome", deve estrear em 2020. Enquanto isso, os seguidores da escritora puderam apreciar uma adaptação diferente do texto no palco do teatro.

Popular no Brasil entre as mulheres, a obra conquistou um homem na Itália: o diretor Luigi de Angelis, que ajudou a conceber a versão teatral de "A Amiga Genial". "É uma história muito local, mas, ao mesmo tempo, sobre todo mundo. Acho que por isso a Elena Ferrante fez tanto sucesso", afirma.

Mesmo tratando de temas como maternidade, violência doméstica e machismo, Angeli diz que se identifica com as mulheres de Ferrante. "É difícil para um homem se identificar com algum personagem masculino do livro, eles são problemáticos, violentos, agressivos. Não são pessoas bonitas", diz.

No início de outubro, a companhia italiana Fanny & Alexander passou por São Paulo para encenar "Storia di un'Amicizia" (História de uma Amizade), levada ao palco do Sesc Pompeia. Foi a primeira e única apresentação fora da terra natal de Ferrante.

Para Fabiane Secches, psicanalista e professora especialista na obra da italiana, é interessante que uma obra contemporânea, com apenas cinco anos de publicação, já tenha ganhado tanto espaço entre adaptações fora das páginas.

Cena da série "My Brilliant Friend", baseada no livro "A Amiga Genial" - Divulgação - Divulgação
Cena da série "My Brilliant Friend", baseada no livro "A Amiga Genial"
Imagem: Divulgação

"Acho que esse é um dos elementos que fortalecem a hipótese de que a obra de Ferrante é de fato um fenômeno de recepção que ultrapassa os marcadores usuais do mercado editorial ou da crítica literária, dialogando com algo mais raro: uma infiltração na cultura que poucas vezes observamos acontecer com obras contemporâneas", afirma.

A peça, diferentemente da série, não tem uma abordagem ilustrativa da história. Dividida em duas partes, a sombria primeira parte, apesar de tratar da infância de Lila e Lenu, usa a analogia das bonecas perdidas pelas duas meninas.

"As bonecas são uma obsessão da Ferrante. Bonecas são coisas que não têm identidade", explica Angelis. "Uma boneca pode ser muito jovem ou muito velha, pode ter todas as idades de uma mulher. É a criança que decide. Por isso, as atrizes são duas bonecas, que também não podem fazer movimentos muito fluidos, por isso elas fizeram movimentos de dança, de jogos da infância, de garotas que brincam e cantam."

No palco, Chiara Lagani e Fiorenza Menni são Lenu e Lila, nesta ordem e ao mesmo tempo. A infância é vivida entre os muros do bairro de Nápoles. "É como um buraco negro", define Angelis. Na segunda parte, que mostra a fase adulta das personagens, o palco ganha cores, os figurinos são mais elaborados e vemos Lila e Lenu enfrentando problemas da vida adulta: trabalho, casamento e maternidade.

Para além de um diálogo com as duas atrizes lendo e interpretando o livro, Angelis quis que elas fossem "lidas pelo livro". "É um tipo de respeito pela obra. Nós não fizemos mudanças na história. Queríamos fazer uma viagem pelo livro, uma viagem emocional pela essência da obra", afirma.

Por conta da identidade secreta da escritora, a montagem demorou um ano para ser aprovada para ir aos palcos. O contato com Ferrante aconteceu por meio do editor italiano. Os artistas não fazem ideia se a adaptação agradou à escritora da mesma forma que a série, que inclusive recebe créditos pelo roteiro. Mas o público saiu satisfeito com a profundidade da peça. Para Secches, a escolha de uma adaptação não literal criou uma nova obra poética e sensível. "É um contraste interessante com a série, por exemplo, pois explora outro caminho", diz.

Sem previsão de uma nova apresentação no Brasil, resta aos Ferrantistas aguardar uma nova temporada da série da HBO e o novo livro, ainda sem data para ser publicado em português, com versão em inglês agendada para 2020.