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Seja um herói até na hora do xixi: o mundo muito particular das startups

Palestra de Sandor Caetano, do Ifood, na Case 2019, evento de startups em São Paulo - Paulo Vargas/Divulgação
Palestra de Sandor Caetano, do Ifood, na Case 2019, evento de startups em São Paulo Imagem: Paulo Vargas/Divulgação

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB

04/12/2019 04h00

"Hey! Que tal fazer um pitch sobre sua startup e deixar uma banca de DEVs avaliá-lo?". Não entendeu nada? É uma proposta indecente, talvez envolvendo satanismo? Fique tranquilo. Você é um "early stage" e só precisa do "right mindset" e "engagement" para virar um "problem solver". Ou, talvez, encontrar "seu espaço like a boss de conexão com o mercado".

Eis uma das características mais marcantes do mundo das startups: o uso indiscriminado de uma espécie de dialeto próprio feito basicamente de (muitos) anglicismos, empolgação empreendedora e suaves pitadas de autoajuda.

Alguém que não é íntimo desse universo e chega a um evento como o Case, realizado semana passada em São Paulo, pode ficar tão desorientado quanto um turista brasileiro em um país de alfabeto cirílico ou árabe. A 6ª edição do Case recebeu cerca de 12 mil pessoas. É o maior evento de startups da América Latina. Por dois dias, as pessoas assistiram apresentações a respeito dos mais variados temas, além de visitarem estandes de 110 expositores.

Hipster, nerd e empreendedor

Conhecimentos de inglês ajudam, mas a mistura de termos técnicos com expressões muito próprias dos "startupeiros" minam a esperança do visitante em entender de que raios afinal as pessoas ali estão falando.

Case 2019, encontro de empresários de startup em São Paulo - Paulo Vargas/Divulgação - Paulo Vargas/Divulgação
Case 2019, encontro de empresários de startup em São Paulo
Imagem: Paulo Vargas/Divulgação

O que é, afinal, uma startup? Leigos imaginam algo muito tecnológico que vai dar um monte de dinheiro. Em linhas gerais, é isso mesmo: "startups são empresas em fase inicial que desenvolvem produtos ou serviços inovadores com potencial rápido de crescimento", explica a ABStartups (Associação Brasileira de Startups) em seu site.
Uma ideia brilhante e muita vontade de vencer, claro, não são o bastante, ainda mais no Brasil, onde apenas uma em cada quatro startups costuma sobreviver aos cinco primeiros anos, de acordo com a ABStartups. Daí a importância, para os "startupeiros", de eventos como o Case.

Em sua identidade visual, seu linguajar e visão de mundo, o universo das startups é uma curiosa mistura de hipsterismo com mundo nerd, exaltação ao empreendedorismo e preocupação com o futuro do planeta.

O site oficial do Case abre com a seguinte mensagem: "O que era hobby virou trabalho. O que era ideia virou produto. O que era alternativo chegou ao mainstream", e completa com a enigmática afirmação: "se você observar bem, nem você é o mesmo. Qual o resultado disso tudo?".

Criatividade até no xixi

As apresentações do Case 2019 foram divididas em quatro grandes frentes de conteúdo: "hacker", que aborda "as novas tecnologias e as maiores tendências na área de desenvolvimento"; "hipster", sobre "tudo o que há de novo no universo de design, UX e produto"; "hustler", a arena que reúne os melhores profissionais de venda e "customer success"; e "hyper", com "as melhores e mais inovadoras práticas de marketing e growth hacking para acelerar sua startup".

O público é claramente jovem (difícil encontrar alguém que aparente mais de 40) e adepto do estilo "informalidade despojada". Alguns usam camisetas com mensagens como "Não existe planeta B" e "Realizador & Empreendedor & Ousado & Disruptivo".

Banheiro da Case 2019, evento de startups em São Paulo - Daniel Lisboa/UOL - Daniel Lisboa/UOL
Banheiro da Case 2019, evento de startups em São Paulo
Imagem: Daniel Lisboa/UOL

É também um evento branco, como é praxe no Brasil quando se reúne a elite de qualquer coisa: durante as seis horas em que lá esteve, a reportagem do TAB viu apenas quatro pessoas negras.

Imersa na penumbra, iluminada apenas por fracas luzes em tons de lilás e azul, a área destinada às palestras tinha clima de boate. Já o discurso de inovação e sustentabilidade estava até nos banheiros. Na porta de um deles, um cartaz avisa que "até seu xixi pode ser sustentável". Ao entrar na cabine para se aliviar, o participante era conclamado a "ser um herói" usando uma descarga "ecologicamente correta e biodegradável" que higieniza o vaso sanitário quebrando a composição da urina.
Visitantes desavisados encontravam dificuldade para matar a sede: sem copos descartáveis à disposição, a não ser que você tivesse adquirido o kit do evento no primeiro dia ou levado sua própria garrafinha, era necessário pedir copos emprestados nos carrinhos de guloseimas.

Preciosismo "não é por mal"

Carrinhos de guloseimas, aliás, que evidenciavam o mashup de Vila Madalena com Vale do Silício (Califórnia, EUA). As ofertas iam de brigadeiro e brownie "gourmet" a tapioca e pipoca feita com semente da flor de lótus.

As patinetes elétricas também estavam lá, em um estande da Lime com um espaço onde as pessoas podiam aprender a manobrá-las.

Para Marcela Marche, que trabalha há quatro anos em uma startup de educação, é normal pessoas acharem certas coisas um tanto incompreensíveis ali. "Acho que usamos demais as 'buzzwords' (palavras da moda no mundo dos negócios). Se quisermos fortalecer o mercado brasileiro, precisamos usar as nossas próprias palavras", diz.

Ela explica, porém, que o Case não é um evento introdutório. Iniciantes devem procurar eventos mais apropriados, como alguns organizados pelo Sebrae. E admite que sim, precisa explicar o que é startup com alguma regularidade. "Principalmente para as pessoas mais velhas, baby boomers, geração X, eles não entendem muito bem."

O advogado Gabriel Dutra veio de Viçosa, interior de Minas Gerais, para tentar encontrar soluções que conciliem o conservador mundo do Direito com o das startups. "Somos muito limitados pelos códigos da nossa área, então busquei meios criativos para inovar", explica.

Sobre as particularidades desse universo, o advogado acredita em "certo preciosismo", do "mesmo jeito que há no meio jurídico", mas não se trata de "questão de ego". "Eles (startupeiros) estão tão imersos no movimento, amam tanto isso, que acabam criando uma linguagem própria. Afasta um pouco? Sim, mas você vai se ambientando."

Case 2019, em São Paulo - Paulo Vargas/Divulgação - Paulo Vargas/Divulgação
Imagem: Paulo Vargas/Divulgação

No espaço reservado aos estandes, expositores chamavam a atenção do público com (claro) muitas frases em inglês, promessas de apoio a startups e até maquininhas para pescar bichos de pelúcia. Muita gente caminhava enrolada na bandeira de seu estado, sempre cheia de assinaturas e recados como uniformes escolares no último dia de aula (coisa de geração X, pensarão alguns).

"O Case selecionou um embaixador em cada estado. Nossa função é promover o evento, e a bandeira é algo simbólico", diz André Hotta, embaixador de Santa Catarina. Ele explica que a bandeira rodou o estado antes do evento para que "vários atores e startups do ecossistema do estado pudessem assinar".

Crie, cresça, ganhe

O mundo das startups é o do "já": uma certa urgência atravessa a linguagem e a simbologia já mencionadas. É preciso inovar, criar, crescer, lucrar e, em última análise, salvar o planeta. Assim, não deixa de ser curioso que, em duas das apresentações presenciadas pelo TAB, os palestrantes tenham, de certa forma, pedido calma ao público.

Em "A era do microlearning: é possível aprender algo novo em 12 minutos?", Guilherme Rocha Mendes falou sobre sua plataforma que resume, em áudio, livros de não-ficção. Ele defendeu o modelo como um incentivador à leitura, já que muita gente passou a se interessar por livros, e procurou lê-los, após escutar os resumos.

Quando parecia que a apresentação focaria apenas em negócios, Mendes colocou no telão fotos nas quais aparece com quinze quilos a mais. Contou então como o trabalho afetou sua saúde e vida pessoal, e desancou frases comumente usadas para incentivar as pessoas a produzir.

Em "Mindset da nova era" (como se vê, é um público convencido de que chegamos a uma nova era), Charles Betito falou sobre a importância da meditação e da empatia pelo outro. Seu vídeo com a narração de um texto de Carl Sagan sobre a Terra provavelmente fez alguns dos presentes chorarem no escurinho.

A mensagem de Sagan é basicamente a de que não adianta se perder em vaidades tolas ou complexos de superioridade: a Terra é um poeirinha minúscula ante a dimensão do universo, e continuará a ser, por muito tempo, o único local habitável para os seres humanos.

"Só o empreendedorismo pode salvar o mundo", diz Betito ao fim da apresentação.