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O que a fuga de Carlos Ghosn revela sobre o sistema penitenciário japonês

Pedestre passa por outdoor com imagem de Carlos Ghosn, em Tóquio - Behrouz Mehri/AFP
Pedestre passa por outdoor com imagem de Carlos Ghosn, em Tóquio Imagem: Behrouz Mehri/AFP

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

10/01/2020 04h00

Rígido e desumano. Assim é chamado o sistema prisional do Japão, país severo nas suas sanções contra criminosos e cuja fama veio à tona novamente, em noticiário internacional, após as declarações do ex-executivo da aliança Renault-Nissan, Carlos Ghosn, acusado pela justiça japonesa de crimes financeiros e enriquecimento ilícito.

Cumprindo prisão domiciliar desde abril de 2019, o franco-brasileiro-libanês fugiu do Japão num jato particular em 29 de dezembro por não aceitar a forma "brutal", segundo ele, com que tem sido tratado. A fuga tem lances espetaculares: Ghosn escapou usando máscara, chapéu e dentro de uma caixa transportada como mala.

Tudo começou em novembro de 2018, quando Carlos Ghosn foi preso pela primeira vez em Tóquio, sob alegações de má conduta financeira. Ele passou 100 dias em prisão preventiva e foi solto após pagar uma fiança milionária, uma das maiores já aplicadas no Japão. Pouco tempo depois, foi preso novamente. Ghosn pagou fiança de novo e, em abril de 2019, passou a cumprir prisão domiciliar sob rígidas condições — era monitorado constantemente pela polícia, teve os passaportes apreendidos e só podia conversar com sua esposa, Carole Ghosn, com autorização da Justiça japonesa.

Em entrevista coletiva na última quarta-feira (8), em Beirute, no Líbano, o executivo afirmou que durante o tempo em que ficou detido, permaneceu isolado durante 130 dias. Também foi levado para uma pequena cela que só tinha uma janela, e era liberado para tomar banho somente duas vezes por semana — regra comum nas cadeias japonesas durante o verão (no inverno só há um banho semanal).

Mas afinal, por que o Japão tem fama de rigidez nas suas prisões?

Para o professor da USP (Universidade de São Paulo) Masato Ninomiya, especialista em Direito japonês, "o sistema penitenciário do país é mais rígido do que o nosso".

No Japão, não há distinções como foro privilegiados nem celas especiais. O julgamento da pena e da gravidade do crime é de livre interpretação do juiz. Pode variar de três a cinco anos de prisão até a pena de morte — neste caso, conferida a quem comete homicídio de duas ou mais pessoas.

"Quando o condenado é recolhido na penitenciária, passa a sofrer uma série de restrições à liberdade. Se ele está recolhido na penitenciária é porque ele foi condenado. Não há presunção de inocência, neste caso", explica Ninomiya. "O regime é rígido, quase militar. Não há visitas íntimas, não se pode conversar com outros, a não ser em alguns momentos como o da refeição. Mesmo assim, a conversa só é permitida entre os presos que apresentam bom comportamento."

No Japão o trabalho na penitenciária é obrigatório, e o preso recebe uma remuneração de pequeno valor. "Não há corrupção miúda, em princípio, no sistema penitenciário japonês", acrescenta, comparando o sistema ao das cadeias brasileiras, em que há uso ilegal de celulares e outros equipamentos de comunicação.

Em entrevista, o ex-promotor japonês Nobuo Gohara disse que o sistema de Justiça criminal no Japão "é focado no interrogatório", com objetivo de obter do acusado uma confissão. "Um suspeito que admite um crime pode até ser libertado da prisão [...] Mas se uma pessoa se recusa a admitir o crime, a Promotoria vai se opor fortemente a sua libertação, até que obtenha uma confissão."

Mas a severidade das cadeias japonesas encontra semelhanças com as brasileiras, em relação à violação de direitos humanos, entende a socióloga Letícia Almeida. "Devemos pensar o que é rigidez. Pois, no Brasil, na prática, também não há presunção de inocência. Há muitos presos que sequer foram julgados. Não há alimentação digna, cuidados com saúde nem acesso efetivo à defesa."

Cartilha da rigidez

Em 2015, Almeida, então coordenadora do Lepif (Laboratório de Estudos e Pesquisas Internacionais e de Fronteira) da USP, escreveu o artigo "Penitenciárias e Dekasseguis: Uma Análise Comparativa entre o Brasil e o Japão", em parceria com o pesquisador Nathan Bueno Macêdo. No texto, os autores descrevem as regras rígidas de comportamento no cotidiano das cadeias japonesas. Um preso é proibido de olhar nos olhos dos agentes penitenciários e as refeições devem durar no máximo 40 minutos — é obrigatório fechar os olhos e só abri-los quando receber o comando para começar a comer.

Carlos Ghosn durante entrevista no Líbano - Joseph Eid/AFP - Joseph Eid/AFP
Carlos Ghosn durante entrevista coletiva no Líbano, na quarta-feira (8)
Imagem: Joseph Eid/AFP

Na prisão de Fuchu, em Tóquio, retratada no artigo e onde há brasileiros, os pesquisadores contam que as pessoas têm seus nomes substituídos por números — uma dificuldade para estrangeiros, que precisam decorar os algarismos na língua japonesa. Os alimentos também entram na lista de regras: o tipo de refeição oferecida varia de acordo com o tipo de trabalho exercido pelos presos; e aos imigrantes desacostumados à culinária japonesa ou que não podem comer arroz, é oferecida alimentação à base de pão.

As formas de punição na cadeia variam de acordo com a reincidência das infrações, que vai de uma notificação à restrição em solitária sem direito de exercer qualquer função ou atividade dentro do presídio. "Caso se torne recorrente um mesmo detento retornar à solitária várias vezes, lhe são amarrados os braços às costas com tiras de couro, impedindo seus movimentos mais básicos, de maneira que o ato de se alimentar (através de uma tigela como um cachorro) e de fazer suas necessidades fisiológicas se torne extremamente frustrante e humilhante", escrevem Letícia e Bueno.

Um dos presos brasileiros entrevistados pelos pesquisadores no artigo, cujo nome foi preservado no texto, diz que foi castigado e ficou na solitária mais de seis vezes. "Todas por não ter entendido as regras do lugar. Cheguei a cortar meu pulso num ato de desespero", lembra o homem. "Aqui nesse lugar vou ter de ser forte se quiser sair saudável. Vi dois conterrâneos serem transferidos por terem ficado loucos."